15 janeiro 2006

O Jardineiro Fiel:plantando a morte na África

O filme de Meirelles, em cartaz nacional, é excelente e, realmente, precisa ser visto. Baseado em um romance de John le Carré, a história, a princípio, gira em torno do drama de um diplomata inglês (Ralph Fiennes) que se depara com o brutal assassinato de sua esposa (Rachel Weisz), no Quênia, no continente africano. Abalado e intrigado pelo fato de que o assassinato é creditado a um crime passional envolvendo dois supostos amantes de sua mulher, o diplomata parte para uma investigação que acaba descortinando uma rede de corrupção, vultuosos lucros e morte, movimentada pela indústria farmacêutica internacional, com o apoio ou a conivência de governos corruptos, do imperialismo e de entidades “humanitárias” (das ONG’s aos órgãos da ONU). Dotado de uma beleza e um cuidado técnico impressionantes – particularmente devido ao maravilhoso trabalho de fotografia do também brasileiro César Charlone (igualmente responsável pelos impressionantes tons e impactantes imagens de Cidade de Deus) e por uma –, O jardineiro fiel também é um potente retrato do local reservado pelo imperialismo à África e seu povo: o da miséria, o da exploração ilimitada e o do sofrimento e da morte provocados pela ganância capitalista.
A conspiração é global - O subtítulo é uma referência à frase que pipoca incessantemente no site oficial do filme, na Internet e serve perfeitamente para descrever o “clima” criado. Narrado sem muita preocupação com a linearidade temporal, o filme transcorre como um misto de história de amor e suspense, cheio de lances envolvendo espionagem, traições e armadilhas, típicos do gênero baseado nas chamadas “teorias da conspiração”. O problema, contudo, é que, neste caso, a conspiração é “real”. Dentro e fora das telas. No filme, Tessa, a mulher do diplomata, é uma apaixonada e idealista ativista que descobre que uma grande multinacional da indústria farmacêutica está “testando” seus produtos na população africana antes sequer de conhecer seus possíveis efeitos colaterais. Ou melhor, sabendo muito bem quais serão as conseqüências: muitos miseráveis “terão” que morrer antes que o remédio possa ser liberado para ser consumido (a um alto custo) no Primeiro Mundo.Tragada – juntamente com um médico africano – para o centro da asquerosa rede que alimenta e, ao mesmo tempo, omite o lucrativo e criminoso negócio, Tessa é eliminada numa conspiração que envolve gente de pelo menos três países e das mais diferentes esferas do poder.No mundo real, desde a década de 50, milhares de denúncias e vítimas já foram feitas em praticamente todo o Terceiro Mundo. No Brasil, por exemplo, há o lamentavelmente famoso caso da talidomida, que deu origem a milhares de crianças portadoras de deformações físicas. Mundo afora, já vieram à tona outros milhares de casos, envolvendo desde órgãos internacionais de saúde até os principais governos imperialistas do mundo, passando pela esmagadora maioria dos laboratórios multinacionais, como a Pfizzer, e fundações “humanitárias”, como a de Bill Gates. Levando a cabo a lógica cinicamente expressa por um dos personagens do filme – a de que só estão “matando gente que irá morrer de qualquer forma” – o imperialismo, além de todos os outros males já causados ao continente africano, não hesita em transformar a população de dezenas de países em meras cobaias, a serviço de seus lucros. Uma história que merecia ser contada. E, felizmente, o foi pelas mãos de um diretor que, cada vez mais, tem demonstrado sensibilidade para retratar os mundos que se escondem abaixo e além da pretensa aparência de ética e “boas intenções” do capitalismo globalizado.
As coisas feias que se escondem sob as pedras dos jardins - O título do filme é, simultaneamente, uma referência ao “hobby” favorito do diplomata e sua quase total incapacidade, até determinado momento, de ver algo que sua mulher insiste em lhe lembrar: sob as pedras dos jardins, escondem-se larvas e umas tantas outras coisas que ninguém quer ver e as ervas daninhas crescem livremente entre as mais belas flores.Essa podridão que floresce em meio à beleza é brilhantemente levada às telas por Meirelles inclusive na sua forma de filmar – o que, certamente, o qualifica como um grande diretor. A todo momento, o espectador é levado ao engano, é levado a tirar conclusões erradas através cenas e situações que confundem aparência e realidade. A começar pela “aparente” traição de Tessa e de todas evidências associadas a sua morte.Gente que não é o que diz ser, remédios que não servem para aquilo que são indicados e imagens que confundem sonho e realidade povoam o filme. Assim como, os festivos sons, ritmos e cores da África surgem como um gritante contraste para a miséria, a seca e as doenças que consomem seu povo.Uma situação que, como o próprio filme mostra logo em sua primeira cena, só tem se agravado com a disseminação da Aids, responsável pela contaminação de 26 milhões de africanos (de um total de 40 milhões em todo o mundo) e, certamente, por um crescente número de mortes de homens, mulheres e crianças, utilizados como cobaias. Um número que nunca saberemos ao certo, porque, como o filme também demonstra, além de não existirem registros destes testes, muitos são aqueles que, depois de mortos, desaparecem, enterrados em solo africano por “jardineiros cruéis”: o capitalismo e seus agentes espalhados pelos governos e empresas que enriquecem plantando a morte no continente.
Wilson H. Silva(redação do Opinião Socialista)