15 abril 2012

"No Chão da escola"



Sei onde estou: a história de Salviano, por ele mesmo

“(...) A carta chegou e tinha o meu nome... sabia que era importante... Então eu abri e li. Arrastado, mas li. Era minha aposentadoria. Fiquei muito emocionado por eu ter lido aquilo... Eu ia ao médico, pois tinha que ir no clínico geral. Eu não sabia ler as placas das portas e ia parar no cardiologista. Hoje não, mudou tudo. Eu leio na rua, paro na banca de jornal e até tiro uma casquinha.”
Salviano ingressou na escola municipal Marcílio Dias, na classe de alfabetização de Jovens e Adultos, depois cursou o Ciclo I, onde ficou dois anos e, por fim, o Ciclo II, onde também permaneceu por dois anos.
Ele é um senhor de 60 anos, que diz ter 49, porque facilita a paquera. Grandão, com cabelos grisalhos estilo Roberto Carlos, solteiro, católico, nascido na Paraíba, veio para Caxias bem jovem.
“Eu sou da Paraíba, vim pra cá com 16 anos, falsifiquei documentos para poder vir para a cidade. Só grandão que tirei a certidão de nascimento. Me levaram no cartório, fiquei lá cheio de vergonha.”
Antes de se matricular na escola, já tinha carreira definida. Recebia um salário mínimo de aposentadoria e complementava sua renda com o serviço de pintor de carros. Seu interesse na escola não está voltado para o mercado de trabalho. Vai muito além. O que ele conta aponta para significados mais profundos que a escola traz na sua vida:
“Pra mim é muito importante, porque eu não estudei quando era novo...”
Trabalha em Saracuruna, como lanterneiro; é famoso, conhecido como melhor pintor de carros da localidade. Um funcionário da escola disse que chega a ter fila de espera para que ele faça o serviço nos carros.
“Há algum tempo eu já queria estudar, mas eu não sabia onde tinha escola que pegasse do início. Não tinha. Aí aqui abriu. Me levaram para uma sala, aí eu vi que tava no lugar errado. Perguntei à professora e ela me levou para a sala certa”.
Quando perguntado quais eram suas metas, desejos em relação ao estudo, ele respondeu:
“Eu quero aprender. Não tenho definição, eu quero aprender.”
Quando ele diz que estudar é muito importante, porque não estudou quando era novo, ele demonstra acreditar que havia uma carência na sua vida. O fato de se autossustentar, se manter financeiramente, não era suficiente para que se sentisse integrado e independente no mundo. O que ele queria e precisava era saber onde estava, como agir, se virar sem precisar estar o tempo todo pedindo ajuda.
17
“A gente passa a entender alguma coisa, já pega jornal e fica sabendo das coisas. Pega ônibus, endereço certo, lado par e ímpar da rua. Com pouca coisinha que tá aprendendo já não precisa ficar alugando todo mundo”.
Relata também o seu olhar para as pessoas que ainda passam por aquilo que ele passou um dia:
“Outro dia eu vi um sujeito novo para receber no banco, tendo que botar o dedão (referência à assinatura com a utilização da impressão digital). Às vezes chega alguém no ponto e pede para mostrar o ônibus, porque não está enxergando. Às vezes acredito, mas às vezes sei que é porque não lê (os ônibus da cidade de Duque de Caxias se identificam pelo nome do bairro e não por números)”.
Com essas duas falas, ele mostra, com situações reais e até bem comuns em seu meio, como é a vida sem estudo, sem saber ler. E o que ele tenta destacar é que saber ou não saber define o cotidiano de uma pessoa: aonde vai, como vai, sua independência e o seu brio. Para esse aluno, não ter estudado significava estar uma categoria abaixo, era ser menos que os outros. Ou, o que era mais grave, não ser ninguém. Ele se desqualificava, por não ter estudado, independente da vida que possui hoje em dia, da família que criou, dos empregos que conseguiu, da história de luta, da superação de obstáculos e até da melhoria de vida em relação à vida de seus pais. Não ser instruído, não ter passado pelo processo de educação formal o definia.
Hoje Salviano fala com orgulho da independência que conquistou. Não da financeira, mas da moral, pois já avalia, vê em outros as “deficiências” que tinha e sabe que não tem mais.
“Antes eu não sabia de nada; hoje eu vou no banco e sei onde estou.”

Paula Figueiredo da Silva Camargo 
Divisão de Educação Infantojuvenil – Filosofia Publicado originalmente no livro 
"No chão da escola,acontecências de um universo apaixonante."