17 abril 2014

Séculos de solidão.

A América Latina,seus povos,sua História ,seus sonhos e suas mazelas foram descritos por Gabo como quem sempre esteve presente em seu coração,sentindo suas dores ,culturas,misticismos e esperanças no ritmo de sua pulsação.O coração deste continente sangrado pela exploração parou.Sentiremos séculos de solidão sem Gabriel García Márquez.

07 abril 2014

O que o Brasil deixou para trás em 1º de abril de 1964? Comentários para uma análise de conjuntura 50 anos depois.

Por Pedro Bras Martins da Costa
Bacharel em ciências sociais pelo IFCS/UFRJ
Dedico este artigo a meu mestre e amigo Wallace Camargo, que com um gesto acolhedor de amizade cedeu livremente um lugar neste blog para sua publicação.
·         Introdução:
Caro leitor, apresento pela primeira vez aqui no Olhar este artigo que pretende ser uma contribuição para pensarmos uma análise de conjuntura que possa esclarecer-nos algo sobre os nebulosos dias que estão por vir. É importante dizer que o presente texto foi produzido em consequência do aniversário de 50 anos do golpe militar de 1964. A relevância da data não poderia deixar de ser imensa devido ao contexto político que se constrói 50 anos depois com a vinda à tona de revelações de antigos torturadores, de documentos dos serviços secretos, de possibilidade real de revisão da Lei de Anistia e de punição aos torturadores, de comemorações e “descomemorações” de grupos políticos que se enfrentaram nas ruas e, sobretudo, do direito a herança do legado histórico do período autoritário, o direito à memória. Entretanto, acredito que o debate político atual sobre o recente passado autoritário da sociedade brasileira, sobre sua transição à democracia burguesa e as disputas a cerca da culpabilidade dos crimes cometidos durante os “anos de chumbo” são questões que sobressaem no momento um problema particular que pode ajudar-nos a entender um pouco da conjuntura nacional de 2003 para cá. De todo modo, estou amplamente convencido de que o resultado dessa disputa será decisivo para a situação política que iremos enfrentar no Brasil nos anos que estão por vir.
A pergunta que faço não poderia deixar de ser simples, o que concomitantemente implica em ser perigosa para mim; quero dizer, o que o Brasil deixou para trás em 1º de abril de 1964? Ora, nessa questão que coloco, e sobre a qual pretendo trabalhar como eixo de minha argumentação, aparecem dois pontos relevantes a serem respondidos: (1) é saber o que havia em 1964 que foi deixado para trás; e (2) que consequências a sua falta pode ter tido 50 anos depois. Uma questão também relevante que poderia aparecer seria a de uma pergunta semelhante em sentido contrário, a saber, “o que o Brasil teria sido se não tivesse deixado o que ele deixou pra trás?”. Pois, o caminho desta última é exatamente o que não quero percorrer. Vou ater-me ao fato de que interessa-nos aqui somente fazer um exercício de política comparada entre a realidade histórica do que o Brasil era e do que ele se tornou. Dito isso, adianto agora que o elo que utilizaremos para falar sobre os anos que antecederam e sucederam ao golpe e os dias atuais é o da política das reformas de base.
·         O que havia antes do golpe?
As reformas de base são particularmente um caso mal resolvido na história política do Brasil. Quando João Goulart anunciou no famoso Comício da Central - que contava com amplo apoio popular dos trabalhadores organizados - que levaria a frente reformas socializantes independente da oposição da maioria do Congresso (“reformas de base na lei ou na marra”), suscitou imediatamente uma resposta dura das elites nacionais. As então chamadas reformas de base constituíam-se basicamente de quatro eixos: (1) reforma agrária, que pretendia realizar a desapropriação forçada de grandes latifúndios improdutivos para distribuição das terras à propriedade privada familiar gerida pelos camponeses que nela trabalhavam. A reforma agrária com a Constituição de 1988 tornou-se uma tarefa obrigatória do Estado brasileiro; (2) reforma eleitoral, que pretendia principalmente estender o direito de voto aos analfabetos que representavam em 1960 uma parcela muito ampla do proletariado e das camadas populares. Vale lembrar que esse direito também só foi concedido em 1988; (3) reforma educacional, que pretendia universalizar o acesso ao ensino fundamental e a alfabetização, bem como a expansão das universidades públicas; (4) lei de remessa de lucros, que limitava às empresas multinacionais o contingente de lucro acumulado sobre a exploração da força de trabalho e das riquezas nacionais que poderia ser remetido as suas matrizes no exterior, obrigando-as a reinvesti-lo na economia interna. Vale lembrar também que foram anunciadas a nacionalização de importantes refinarias estrangeiras de petróleo.
Cabe-nos aqui entender, a partir da metodologia do materialismo histórico-dialético, a crucial distinção entre forma e conteúdo do nosso objeto, precisamente das reformas de base. Adianto desde já que isso será importantíssimo para realizarmos nosso exercício de política comparada, uma vez que o termo “reformas de base” foi um nome historicamente empregado naquele contexto para caracterizar um conjunto de políticas públicas que permanentemente estão em debate não apenas no Brasil, mas em todos os países que tiveram sua trajetória nacional no século XX marcada pelo dilema da emancipação nacional versus associação subordinada ao capital imperialista (e nos casos africanos e asiáticos, colonial). Por conteúdo do nosso objeto, entendo o processo de reformas estruturais que pretendem promover ações socializantes, também chamadas de democratizantes, que possibilitem um maior acesso das massas de trabalhadores explorados pelo capital aos frutos da riqueza e do poder social e consequentemente forjem as bases de uma sociedade capitalista “humanizada” diferente daquela que tais países herdaram do processo colonizador. São chamadas de estruturais justamente por seu caráter permanente e livre das oscilações democráticas entre governos de situação e oposição. As reformas socializantes eram então vistas por muitos setores diferentes da sociedade (que iam de parte das classes médias ao operariado e campesinato, do centro à extrema esquerda) como uma etapa necessária no disputado processo de desenvolvimento nacional. Como disse o sociólogo Florestan Fernandes - um dos nomes mais importantes das ciências sociais no Brasil -, “a democracia é a condição da revolução burguesa, mas é também o freio dos interesses egoístas da burguesia” [1]. Assim, era a visão de trabalhistas e comunistas. Já por forma do nosso objeto, entendo as diferentes “roupas” que ele utiliza em diferentes conjunturas políticas e históricas. Entendo seus limites em cada momento, os nomes a ele atribuídos e por fim, o papel estratégico que ele desempenha nos fins políticos de cada classe em disputa. Em todos esses países, que um dia foram chamados de Terceiro Mundo, nosso objeto “vestiu-se” de formas diferenciadas tendo assumido no Brasil o nome de tarefas nacional-democráticas, ou seja, tarefas que o desenvolvimento nacional deveria enfrentar para democratizar a sociedade e “emancipar política e economicamente a Nação”. As reformas de base, projeto conjunto do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Jango e sindicatos ligados ao Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e as Ligas Camponesas, estes dois últimos movimentos sob hegemonia do Partido Comunista Brasileiro (PCB), era precisamente encarada por esses setores como uma dessas tarefas nacional-democráticas.
Entretanto, não era apenas essas reformas que tiravam o sono das oposições ao governo Jango, mas era o pacto populista – também conhecido como populismo - iniciado por Getúlio Vargas, uma vez que esse como fenômeno político era entendido como um modelo de desenvolvimento que era o responsável, segundo a oposição, pelo crescimento do poder político de sindicatos, de trabalhadores organizados e do movimento comunista dentro do Brasil. Acusavam o Executivo de promover após a reabertura democrática e o autoritário governo de Dutra uma “República Sindicalista”, devido ao atendimento do Ministério do Trabalho às reivindicações favoráveis aos trabalhadores grevistas nas disputas capital-trabalho que aumentavam em número e intensidade. Particularmente, a política externa de Jango também gerou grande polêmica na oposição. Durante seu governo, Jango decidiu reatar relações diplomáticas com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e com a China Popular (de Mao Tsé-Tung). Não por acaso, a primeira tentativa de golpe ocorreu justamente em ocasião de visita diplomática de Jango a China Popular para firmar acordos de cooperação econômica. Além disso, o populismo de seu antecessor, Jânio Quadros, fez do Brasil um dos primeiros países latino-americanos a reconhecer a legitimidade da Revolução Cubana de 1959, o novo governo independente, que chegou a condecorar em visita oficial o então ministro da economia cubana, o ex-guerrilheiro comunista Ernesto “Che” Guevara. Também a concessão de aumento de 100% no salário mínimo de trabalhadores urbanos e a proposta de inclusão dos trabalhadores rurais às leis trabalhistas da CLT (direito que só foi estendido em 1988!) eram vistos como fruto de uma suposta intervenção dos comunistas no governo federal. Sobre este ponto cabem três reflexões importantes: (1) sobre o fenômeno do populismo como orientador da conduta de ação do Estado e de alguns partidos no Brasil; (2) sobre a política externa brasileira que amadurecia em Jango; (3) sobre as relações entre comunistas e trabalhistas que precisam ser mais bem delimitadas.
Sobre o primeiro ponto, gostaria de chamar atenção ao fato de que uma corrente cada vez mais importante da historiografia brasileira busca explicar o fenômeno político do populismo (1930-1964) pelo conceito gramsciano de crise de hegemonia [2]. Empiricamente, o processo de industrialização da economia brasileira que começara nas últimas duas décadas da República Velha ganhara impulso somente com o governo Vargas. Getúlio promoveu um processo de industrialização sob direção estatal, baseado na política de substituição de importações, de criação de um mercado interno e de amortização dos conflitos entre aristocracia rural e burguesia industrial, e entre burguesia industrial e operariado. O conceito de transformismo de Antônio Gramsci também é perfeitamente aplicável ao processo de desenvolvimento brasileiro, porque no Brasil a Revolução Burguesa e o advento da Modernidade não se deram por uma ruptura violenta com a antiga ordem, ou seja, por uma burguesia urbana que teria sido capaz de tomar as rédeas do Estado pra si e aniquilar a fração de classe (também burguesa) dos latifundiários. Mas, ao contrário, o que ocorreu no país foi uma lenta e gradual transformação do capital rural em capital industrial, das famílias dos barões do café em barões das fábricas, da transformação da hegemonia dos latifúndios em hegemonia da produção industrial, fenômeno que ficou conhecido na Europa como via prussiana para a modernização.
O que ninguém contava era com os resultados sociais do processo de modernização do Brasil. Até antes de Vargas, não contavam com o crescimento colossal do proletariado, a populosa classe social daqueles que sobrevivem única e exclusivamente da venda de sua força de trabalho de maneira assalariada livre. Os conflitos viscerais que a exploração do trabalho (inclusive infantil) produzia nas fábricas gerava na sociedade a alternativa viável de um movimento pelos direitos dos trabalhadores. Tão pouco contava com a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia que instaurou o primeiro Estado Proletário do mundo e, mais que isso, a alternativa socialista que guiou o movimento dos trabalhadores durante todo o século. O populismo não é uma ideologia de esquerda e desde Vargas os “populistas” vacilaram entre a alternativa da conciliação de classes como no governo Jango e o autoritarismo de classe, ou a repressão total de todos os setores do movimento dos trabalhadores os quais não pudessem controlar para alcançar seus objetivos; haja visto exemplarmente a violenta perseguição do Estado Novo e do governo Dutra ao PCB, tendo inclusive cassado em 1948 os mandatos de toda a bancada do partido e posto ele novamente na ilegalidade. Os objetivos do populismo não eram se não, os de desenvolver a economia capitalista no Brasil consolidando uma sociedade burguesa industrial “moderna” o suficiente para inserir-se pouco a pouco como economia “autônoma” no mercado mundial de capitais. Essa observação será importante para nós. A crise de hegemonia para entender esse processo advém: (1) da impossibilidade lógica de promover um desenvolvimento industrial acelerado baseado na dinâmica do capital que promova em igual medida e igual tempo o desenvolvimento material das condições de vida daqueles que vendem sua força de trabalho. Em outras palavras, por um fator econômico; (2) das condições favoráveis à luta dos trabalhadores, condições essas consequentes da existência de uma alternativa histórica e então concreta à sociedade capitalista, a alternativa socialista, que se desenhava em experiências concretas de organização fabril e de poder popular. Em outras palavras, um fator político. Portanto, consistia em uma crise de hegemonia da burguesia em conduzir seu processo revolucionário.
Sobre o segundo ponto – precisamente, o da política externa de Jango – é essencial entendermos o contexto em que se dava a Guerra Fria, que teve implicações diretas e indiretas no golpe de 1964. Não apenas o Brasil, como todos os países latino-americanos até a Revolução Cubana, era considerado zona de influência política e econômica “natural” do imperialismo dos EUA (nas palavras de Monroe). Antes de falar propriamente sobre a política externa de Jango, quero deixar delimitado o que entendo por imperialismo. Este não é um fenômeno estritamente geopolítico e a compreensão da totalidade de seu movimento devemos a contribuição intelectual singular de Lênin [3]. Por imperialismo, entendo o estágio avançado de uma sociedade baseada na lógica do capital, no qual sua economia já atingiu intenso grau de monopolização e de fusão entre capital financeiro e capital produtivo, de maneira que já não se pode mais empiricamente enxergar os limites nem de um nem de outro. As consequências de uma economia monopolizada de tal tipo é precisamente a de expandir-se territorialmente no domínio das forças produtivas e das matérias-primas do mercado mundial, no mais alto grau da contradição entre a socialização da produção e a privatização da riqueza, de instrumentalização do Estado burguês e do uso sistemático do belicismo. O domínio geopolítico mundial e o militarismo são, em última instância, suas consequências sócio-políticas.
A política externa de Jango era o esboço brasileiro de um movimento internacional de grandes proporções que atingiu os países do então “Terceiro Mundo”, o da política externa do não alinhamento. Sobretudo nos casos africanos e asiáticos, os países ao promoverem entre os anos 1950 e 1970 revoluções de libertação nacional do domínio colonial enfrentavam um dilema do qual ninguém podia escapar: o de escolher entre a associação a um dos lados em disputa na Guerra Fria. Como muitos processos de independência foram liderados por frentes de libertação nacional nas quais os partidos comunistas tinham grande peso na luta contra o domínio colonial do imperialismo, em igual número de casos os novos governos independentes escolhiam associarem-se a URSS (como Angola e Moçambique) ou a China (como o Vietnã). Entretanto, em tantos outros casos, os novos governos independentes decidiam por uma terceira via, ou seja, a de não alinhamento com nenhum dos dois polos, ampliando o horizonte de possibilidades para o futuro nacional (como é o caso mais emblemático do Irã pós-revolução de 1979). Esse era precisamente o objetivo de Jango durante seu governo. Ao optar por reabrir relações diplomáticas com a URSS - abertas com Vargas devido à entrada do Brasil na Segunda Guerra e fechadas com Dutra em sua política anticomunista - e visitar a China Popular, Jango queria justamente abrir o horizonte de opções de negociação para além da “antessala” de Washington, a Organização dos Estados Americanos (OEA). Queria frisar esse ponto sobre a política externa de Jango, porque ele é um dos fundamentos do discurso anticomunista que serviu às forças que aplicaram o golpe.
Já para o terceiro ponto, o de entendermos a conduta dos comunistas na política nacional, teremos que remetermo-nos em primeira instância a seu principal polo de organização a época: o PCB, partido que fora fundado em 1922 como herdeiro da Revolução Russa de 1917 e associado a III Internacional Comunista (“Komintern”), hegemônico na esquerda, que havia até então experimentado um único período de legalidade entre 1946 e 1947. Em segunda instância a um documento publicado no jornal Voz Operária que conduziu a intervenção do partido no momento pré-golpe, conhecido como Declaração de Março de 1958 [4]. Entretanto, vale aqui mais uma nota, a de que iremos didaticamente tratar da conduta do PCB a partir dos argumentos do ideário oposicionista que sustentou o golpe, a saber, o do anticomunismo como ideologia política, ou da falácia de que os comunistas iriam implantar um “regime soviético” no Brasil.
Para muitos hoje, o PCB pagou um duro preço na história pelos erros cometidos em sua relação com o pacto populista, mas parece-me demasiado injusto atribuir esse erro só a ele. Afinal, a Declaração de Março de 1958 era parte de uma corrente de opinião maior do movimento comunista internacional que acreditava que países em “situação colonial” ou “semicolonial” (entre os quais o Brasil) deveriam ter como prioridade a luta pela libertação nacional do imperialismo e não a luta imediata para a revolução socialista, posição que se intensificou ainda mais após a vitória da URSS sobre a Alemanha de Hitler que passou então a caracterizar o caminho para a revolução socialista não apenas de forma democrática, como também de forma pacífica [5]. Depois de manter-se em oposição ao Estado Novo e ao governo Dutra, o PCB apoia de forma crítica o governo eleito de Vargas contra a oposição à direita que já dava claros sinais de “golpismo” com a União Democrática Nacional (UDN), mas é só mesmo a partir de 1958 que o PCB aposta na “frente única de luta por um governo nacional e democrático”, que, formada por uma aliança de classes entre o proletariado e a burguesia nacional - que supostamente teria interesses contrários ao do capital internacional em atividade no país -, pudesse emancipar o Brasil do domínio político e econômico do imperialismo estadunidense pela “via pacífica da revolução”. Ou seja, o PCB adotou uma tática que ficou conhecida como etapismo, ou a revolução por etapas, na qual seria primeiramente necessária uma etapa de desenvolvimento nacional de uma sociedade capitalista avançada para que surgissem as condições de existência de uma classe proletária que tivesse condição de tomar consciência de sua missão como sujeito histórico de uma etapa sucessora, a etapa da revolução socialista. Para a primeira etapa, seria necessário lutar pelo avanço de uma democracia popular (ou seja, não meramente formal) que pudesse ser ao mesmo tempo propulsora do desenvolvimento e freio dos interesses “egoístas” da burguesia. Para se ter uma noção de quão geral era essa corrente de opinião na esquerda brasileira, mesmo as organizações que apostaram na luta armada para derrubar a ditadura, organizações estas que se formaram a partir de militantes e quadros saídos do PCB, em sua maioria, no momento pós-golpe por discordarem da tática do partido de “frente ampla contra a ditadura”, não o fizeram por defender a necessidade imediata de uma revolução socialista no Brasil, se não pela questão da libertação nacional, do etapismo, e da derrubada violenta da ditadura para conformação de um governo democrático com ampla participação popular.
Vale dizer, portanto, que o argumento de que havia um “perigo comunista” imanente no Brasil é falso, pois, diferentemente do que fora amplamente pregado por setores oposicionistas, a tática do movimento comunista e do PCB no Brasil não era, se não, a da realização da etapa nacional-democrática da revolução, na qual aquelas tarefas nacional-democráticas que nos referimos no início dessa exposição tinham um peso enorme para o sucesso dessa política. E o fato empiricamente dado é que em 1964 as tarefas nacional-democráticas em questão eram precisamente as reformas de base. Por isso que o projeto das reformas de base não pode ser atribuído exclusivamente às canetas do gabinete de Jango, se não a uma demanda histórica emanada da classe operária e camponesa, dos seus sindicatos e conselhos de trabalhadores, discutida e fundamentada por um partido comunista de ampla representação nacional e legitimada por uma ampla maioria popular segundo pesquisas históricas mais recentes. O objetivo da classe trabalhadora organizada em prol de seus interesses era precisamente o de estabelecer reformas que, como disse Florestan [6], democratizassem a renda, o prestígio social e o poder. Entretanto, quando afirmo que o argumento anticomunista no Brasil não era plausível, não afirmo que ele deve ser descartado; ao contrário, o anticomunismo como fenômeno político orientou ideologicamente os setores da sociedade civil que sustentaram o golpe e, portanto teve importância significativa na realidade. Mas o que é o anticomunismo como fenômeno político? Quais foram suas proporções? De pronto adianto que por tratar-se de um fenômeno internacional ele também deve ser caracterizado como de grande complexidade. Por esse motivo, farei um esforço em limita-lo à discussão interna do Brasil [7].
Parece-me que o anticomunismo, em especial quando toma grandes proporções em sociedades democráticas, expressa a “ideologia da burguesia em crise”, ou seja, uma postura de radical oposição de caráter reacionário às forças progressistas num momento em que os partidos comunistas mostram-se como uma alternativa real de poder aos trabalhadores. Nesse ponto, gostaria de dizer que o anticomunismo expressou-se na realidade brasileira como um ponto nodal, ou seja, como um polo da aliança das diferentes frações de classe da burguesia e da pequena-burguesia que conformaram uma oposição sólida e real a um inimigo comum, que não necessariamente era comunista, mas que era considerado diretamente responsável pelo crescimento desses. Em outras palavras, um motivo de unificação da classe burguesa pela superação das diferenças imediatas entre as diferentes frações em disputa em prol de uma aliança contra um inimigo estratégico comum. Sua expressão política mais elevada deu-se exatamente na Marcha com Deus, pela família e pela liberdade contra o comunismo de 22 de março de 1964 em São Paulo. Em contrapartida, do outro lado do nosso quadro estava a necessidade imediata da solução de problemas sociais que abalavam as famílias operárias e camponesas - tais como a fome, a exploração e a miséria -, ou seja, a pressão “pré-política” (mais corretamente expressa no termo “infraestrutural”) que a carência de condições materiais de vida exercia sobre a classe proletária, foi precisamente o ponto nodal oposto ao anticomunismo; foi o ponto de unificação das frações de classe do proletariado com setores progressistas da classe média. A frente única é por fim, a expressão desta unidade. Para concluir, uma prova concreta de que o golpe pressupôs uma aliança dentro da própria burguesia é o fato de que durante o regime militar sempre existiu uma oposição entre “moderados” e “linha dura” dentro do próprio ARENA e dos altos círculos militares, tendo feito com que num momento posterior algumas organizações civis que aderiram ao golpe voltassem atrás, como é o caso das principais correntes da Igreja Católica.
·         O que sucedeu o golpe?
Para que não nos percamos em discussões frutíferas e infindáveis sobre aspectos que não serão importantes aqui, continuarei na linha de raciocínio que estabelecemos na introdução, a saber, da questão das reformas de base. Imediatamente após o golpe, a tarefa do novo governo passou a ser a de sabotar as reformas estruturais que a esquerda havia proposto para o país. Na verdade, a minha tese consiste no fato de que ele iniciou contrarreformas, ou seja, nos moldes de um governo bonapartista, realizou políticas e erigiu instituições e regras de caráter precisamente contrário as que as tarefas nacional-democráticas da esquerda propunham. Falaremos com atenção sobre esse aspecto, mas primeiro gostaria de deixar claro qual o caráter que a intervenção militar de 1964 assume para a História política brasileira.
Durante muitas gerações, a historiografia brasileira confundiu-se com o problema da necessidade de se tomar uma perspectiva de totalidade da análise no caso específico da classificação do período autoritário brasileiro, a saber, a de que o termo “regime militar” ou “ditadura militar” parecia demasiadamente simples e incompleto a ponto de não dar conta da realidade das estruturas e grupos de sustentação do período autoritário. A justificativa era tão simples quanto o problema e poderia ser em poucas palavras resumida em: “pelo termo ditadura militar entende-se que os militares conduziram o processo autoritário ou de maneira exclusiva ou como lideranças políticas do processo, fatos que não são, segundo as fontes historiográficas mais recentes, empiricamente constatáveis”. A perspectiva da totalidade faz com que, em contrapartida, tomemos na análise de conjuntura daquele período histórico o ponto de vista dos elementos de sustentação do regime. Mas quais foram esses elementos? Podemos enumerá-los de maneira rápida em: (1) a influência política e geoestratégica do imperialismo dos EUA; (2) a frente anticomunista de união entre as classes burguesa e pequeno-burguesa; e (3) o poder econômico que financiava as ações do Estado autocrático; (4) a intelectualidade do regime representada pela dupla IPES-IBADE [8]. Desse modo é corrente hoje, e a meu ver muito mais preciso, o termo ditadura civil-militar ou ditadura empresarial-militar. Isso suscita a conclusão de René Dreifuss [9] de que o golpe de 1964 foi na verdade um golpe de classe.
A tese do golpe de 1964 como um golpe de classe significa que ele marcou o período de tomada do poder do Estado pela aliança burguesa, no qual começou-se a partir de então a erigir uma estrutura político-estatal que fosse mais “segura” e “estável” para a tarefa do desenvolvimento nacional. Com essa estrutura político-estatal, chamada por Florestan de Estado autocrático-burguês, inicia-se a referida série de contrarreformas que visavam garantir a seguridade do mercado brasileiro para o capital tanto nacional quanto internacional. Interessante também é que por “golpe” não necessariamente deve-se entender uma tomada de poder por fora da legalidade jurídico-política, mas precisamente o contrário, de que existem em muitas democracias burguesas artifícios de direito que possibilitam a interrupção de um processo democrático por via constitucional. Esse era precisamente o caso brasileiro. Chamo a atenção porque há entre a extrema direita o argumento de que o golpe de 1964 foi constitucional, uma vez que o impedimento de Jango foi aprovado pelo Congresso. O que os partidários de tal argumento não podiam contar era que o dispositivo jurídico-político do golpe, ao invés de legitimar uma ação “legalista”, ratifica ainda mais a definição de golpe civil-militar, ou seja, de que a alta cúpula das forças armadas ao invés de dirigir exclusivamente o aparelho estatal durante o regime dividiu essa direção com importantes setores da sociedade civil burguesa, do empresariado e de seus setores politicamente organizados; tendo por isso cumprido a tarefa nacional de uma agenda burguesa desenvolvimentista para a política brasileira elaborada por seus órgãos de intelectualidade.
Na esfera superestrutural da ideologia havia um valor que era tido como crucial para a nova elite dominante do país, o valor da ordem. A chamada garantia da ordem que rogava-se às forças armadas pelo Estado e pela imprensa apresentava-se como um princípio fundamental da “segurança nacional” e da estabilidade do mercado brasileiro de capitais. Interessa-nos agora então, a delimitação do que entendemos por ordem como conceito sociológico. Esta como este tipo de conceito será entendida aqui como o dispositivo político do fenômeno de reprodução de uma sociabilidade, que, numa perspectiva materialista do caso brasileiro, é precisamente o da reprodução das relações sociais de produção capitalistas. Isso significa que uma dada sociedade apresenta dois tipos de movimentos em sua dinâmica, a saber, o da produção e o da reprodução de determinadas formas de sociabilidade. Grosso modo, significa perceber a sociedade como possuidora de regularidades, em outras palavras, de ações sociais que se produzem e se repetem ordinariamente em todas as esferas da vida social. A lógica que faz com que uma mesma ação repita-se cotidianamente chama-se dominação e é ela que importa sociologicamente. Essa lógica apresenta-se nas ações que os homens empregam na produção material da sociedade (grosso modo na economia) e na reprodução das relações culturais e políticas que estabelecem entre eles. Entretanto, é crucial apontar que a ordem no caso que estudamos não é apenas um conceito sociológico, mas, sobretudo, um conceito axiológico, ou seja, valorativo. Por interessar-nos aqui uma análise política de conjuntura, teremos de empregar o conceito de ordem por sua materialidade na vida política da realidade histórica que estudamos. Dessa forma, em política a ordem apresenta-se strito sensu ora como reivindicação, ora como denúncia de sua ausência (desordem) e é por isso capaz de orientar a conduta dos homens de ação. A ordem como bandeira política é essencialmente conservadora, porque está calcada na manutenção e na defesa de um tipo de dominação que está dado, em última instância, da tradição da continuidade das formas dadas de reprodução da sociabilidade burguesa; especificamente para nosso objeto, do status quo radicalizado pelo golpe civil-militar.
A garantia da ordem, ou seja, da nova ordem estabelecida na dinâmica do conflito capital-trabalho, foi a responsável pela repressão violenta a todos os setores opositores que visavam sabotar as estruturas do Estado autocrático. Foi, sobretudo, o instrumento necessário para liquidar com a organização do movimento operário já em 1964. A ditadura brasileira manteve uma “obsessão legalista” que, entre outras coisas, não promoveu o fechamento dos sindicatos. Ao contrário, sua tática muito mais inteligente visou atacar o movimento dos trabalhadores organizados naquilo que lhes dava vitalidade: o “chão-de-fábrica” e a “central sindical”. Nas palavras de Marco Aurélio Santana [10], o aparelho da repressão “cortou o pé e a cabeça do movimento operário”, fechando “conselhos de fábrica” e de local de trabalho, organizando “listas negras” de trabalhadores junto ao empresariado e fechando a central sindical do CGT. Entretanto, o “corpo” não escapou ileso, dado as inúmeras intervenções do Ministério do Trabalho e da Polícia Militar e Civil nos sindicatos, em suas eleições e atividades.
A estratégia da ordem visava também com grande ênfase aniquilar o Partido Comunista Brasileiro. Esse foi um objetivo particular da intelectualidade do regime autocrático. O argumento de que a ditadura apenas repreendeu de maneira violenta as organizações políticas que se encaminharam para a tática da luta armada não procede. O PCB, por exemplo, mesmo não defendendo a luta armada e tendo apostado na consolidação de uma frente ampla entre o movimento operário e camponês e setores da oposição formal ao regime (do Movimento Democrático Brasileiro – MDB) para democraticamente derrubar a ditadura, foi em números absolutos até mais atacado que as organizações guerrilheiras. Vejamos alguns números da “ordem”: a anistia a ex-dirigentes do PCB como a Luiz Carlos Prestes e Gregório Bezerra só foi concedida mais de um ano e meio depois da aprovação da Lei de Anistia em 1979; embora as primeiras eleições livres tenham ocorrido já em 1982 com a presença de dois recém-fundados e legalizados partidos de forte oposição ao regime ditatorial – o Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula e o Partido Democrático Trabalhista (PDT) de Lionel Brizola -, o PCB só conquistou sua legalidade em 1985 tendo ficado alijado daquele pleito eleitoral; por fim, o PCB teve mais de 1.300 militantes presos e processados, mais de 5.000 exilados e, apenas durante a Operação Radar (1974-1976) do governo de Ernesto Geisel, 40 dirigentes assassinados, dos quais 10 destes representavam quase 1/3 de seu Comitê Central [11]. Mesmo após a Lei de Anistia, a repressão ao PCB continuou, tendo sido emblemático a tomada de assalto que a polícia federal fez ao VII Congresso do partido em São Paulo já no ano de 1982, tendo prendido todos os militantes sob acusação de infringir a Lei de Segurança Nacional.
Voltemos agora à questão levantada sobre as contrarreformas. Não é nem de longe falso o argumento de que a ditadura civil-militar proporcionou um boom na industrialização do país, na conformação de uma infraestrutura econômica e no amadurecimento da economia brasileira de matriz capitalista; bem como a expansão destas formas de relações sociais de produção para toda a sociedade, ou, em outras palavras, o chamado desenvolvimento nacional. Não é nossa intenção falar de seus números aqui, mas sim sobre seu caráter e modelo de desenvolvimento, mais precisamente, sobre as consequências do processo de industrialização acelerada para a vida das famílias de trabalhadores brasileiros.
Dessa forma, é impossível entender os recordes obtidos pela acumulação de capitais, sobretudo durante o milagre econômico, sem levar em conta a política de arrocho salarial que dirigiu hegemonicamente a política salarial do Brasil até a vitória da terceira greve do ABC em 1981. O que era o arrocho salarial? Ele era um mecanismo do Ministério da Fazenda para o controle da inflação mediante o congelamento dos salários e pensões dos trabalhadores, que resulta da diminuição do consumo interno pela diminuição do poder de compra. O Estado autocrático, para não incorrer no “erro” do populismo de deixar que a decisão das disputas salariais saísse das mesas de negociação entre sindicatos e empresários, trouxe para “dentro de si” o mecanismo do controle salarial. A partir de 1964, os sindicatos tutelados deveriam negociar seus aumentos salariais com o Ministério do Trabalho e, por determinação da política econômica, os aumentos destes não poderiam ser superiores ao índice inflacionário oficial do governo (INPC). Porém o INPC, sobretudo a partir de 1973 não correspondia nem de perto a realidade da inflação dos preços que chegavam ao consumidor final. Sem o crescimento da renda dos trabalhadores assalariados e com a explosão demográfica do país sobretudo nas grandes cidades, a política econômica da ditadura conseguiu em 20 anos conformar uma gigantesca classe de proletários, seguida por um gigantesco exército industrial de reserva. Conseguiu proletarizar uma parcela significativa da classe média reduzindo a quantidade relativa de profissionais liberais no país; conseguiu tornar ainda mais dependentes do trabalho assalariado a classe proletária, através do processo de expropriação das pequenas propriedades privadas familiares, sobretudo no campo com a Revolução Verde; conseguiu conformar um amplo segmento de trabalhadores em situação de desemprego, subemprego, atividades temporárias e emigrantes, que pressionaram tendencialmente para baixo os salários no mercado de trabalho. Agravou com isso a fome e a miséria no país que explodiram principalmente entre 1975 e 1985.
A contradição entre arrocho salarial e índices de produtividade cada vez maiores, significou na realidade o mais intenso processo de transferência de renda dos trabalhadores laborais para os detentores da propriedade privada dos meios de produção. Em outras palavras, entre 1968 e 1973 o Brasil viveu o maior período de concentração de renda de sua história [12]. Interessante é averiguar o fato de que isso atingiu a economia doméstica da grande maioria das famílias de classe média que tinham apoiado o golpe contra Jango num momento anterior. Essa concentração de renda foi necessária para consolidar (ou “construir”) o Brasil que temos hoje, pois ela fez parte do processo de monopolização do capital brasileiro que a ditadura civil-militar levou a cabo em associação direta e subordinada ao capital internacional. Chama atenção mais uma vez o argumento de partidários do regime, “de que os militares foram convocados pela população para cumprir uma missão nacional derrubando Jango e livrando o país da ameaça comunista”. Mas, foi propriamente durante o período autoritário que o capital brasileiro mais tinha se internacionalizado até os anos 1990, fundindo-se com o capital internacional. Ou seja, foi sobretudo com as dívidas referentes aos acordos de empréstimos financeiros entre Brasil-EUA/FMI contraídos sob o regime civil-militar, e com os incentivos fiscais às indústrias multinacionais no país, que uma parcela amplamente significativa da riqueza nacional produzida pelo trabalho laboral foi apropriada por acionistas e empreendedores do mercado financeiro internacional. Soa cômico que talvez a proposta mais nacionalista fosse justamente a de Jango, que defendia a autodeterminação nacional, a política externa do não alinhamento e a independência do capital brasileiro frente ao imperialismo.
Sociologicamente falando, teria sido improvável um processo de expropriação ocorrer em tão alto grau e em tão pouco tempo sem manifestações viscerais dos trabalhadores expropriados contra sua exploração, ou seja, sem o fator econômico a que nos referimos na seção anterior, a saber, da pressão material que as condições sociais de vida exercem sobre a formação das consciências políticas. Como então explicar o relativo baixo número de greves que ocorreram entre 1968 e 1976? Parece-me plausível que as manifestações de insatisfação contra as condições de vida e contra o regime tenham diminuído justamente no período de avanço da repressão violenta do Estado. Isso quer dizer que, ao contrário do argumento de que “a repressão política como elemento de análise deve ser dissociada da avaliação do governo militar”, sob a perspectiva metodológica da totalidade, que torna impossível fazermos tal delimitação da realidade histórica, a repressão política era um elemento chave da política econômica. Isto, pois, se não tivesse havido repressão politica ao movimento sindical e perseguições a militantes que organizavam os trabalhadores para lutarem por suas demandas históricas, teria sido improvável a persistência do arrocho salarial.
Para concluir, quais foram então os resultados dessas contrarreformas? Precisamente o resultado oposto às intenções das tarefas nacional-democráticas. As contrarreformas operadas pelo Estado autocrático burguês entre 1964 e 1985 promoveram justamente o estrangulamento da tentativa de democratizar o poder e de socializar parte considerável das riquezas nacionais, garantindo as condições estruturais de funcionamento de mercado para maior participação da classe trabalhadora no montante do produto da produção econômica nacional. O Brasil que herdamos no início do novo século fora justamente o Brasil que o período autoritário construiu: um dos cinco países mais desiguais em renda do mundo (diferença entre os 1% mais ricos e os 10% mais pobres); um país em que os 5% mais ricos detinham em fortuna o equivalente a quase 65% do PIB nacional; um dos três países em situação de paz com maior índice de homicídios do mundo (dos quais se estima que cerca de 50% eram cometidos pela Polícia Militar); um país da institucionalização da prática da tortura (contrária aos acordos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário); e um país de uma democracia tutelada. Deixo a livre interpretação da imaginação histórica que o pensamento nos pode proporcionar para aqueles que gostariam de imaginar o que poderia ter acontecido se o Brasil não tivesse deixado às reformas de base para trás em 1º de abril de 1964.
·         Tarefas e dilemas da sociedade democrática que herdamos:
Não poderia ter escapado à tradição política brasileira que a passagem de nosso Estado autocrático para um Estado Democrático de Direito tivesse ocorrido novamente pela via prussiana da modernização, ou seja, pela via do transformismo que discutimos já anteriormente. Velhos defensores do golpe e da ditadura transformam-se com passar dos anos em supostos defensores da democracia e da abertura política do país. E, muito embora, a mobilização popular e social que reanimou intensamente o movimento dos trabalhadores do campo e da cidade nos anos 1980 tenha desempenhado um papel fundamental na conformação da opinião pública favorável às eleições diretas, à nova constituição e a volta à democracia, todo seu acúmulo foi derrotado nas estratégias das elites nacionais em consolidar um processo de reabertura “lento, gradual e seguro”. Em outras palavras, a alternativa de derrubada violenta, porém democrática, da ditadura que se conformava nas ruas - a qual tinha a hegemonia do chamado campo democrático-popular, do qual o Partido dos Trabalhadores (PT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) eram algumas de suas lideranças mais latentes – fracassou na derrota das Diretas Já, na fragmentação das esquerdas na Assembleia Constituinte e na derrota da chapa Brasil Popular (PT, PDT, PCdoB, PSB) nas eleições presidenciais de 1989. Diferente do caso argentino, no Brasil o regime ditatorial não foi derrubado, mas foi transformado em democrático, mantendo certos eixos importantes de conexões entre as duas formas de organização estatal (o que chamaremos de nossa herança autoritária). As conexões (ou resquícios) que ligam duas formas de sociabilidade política temporalmente sequenciadas em uma mesma sociedade nacional não é algo novo, mas sim algo próprio de transições feitas sem ruptura.
Um desses elementos de continuidade foi o da criação de um mecanismo de funcionamento político no Brasil com a Carta de 1988 chamado de presidencialismo de coalizão. O que seria o presidencialismo de coalizão? Este é um fenômeno consequente de artifícios legais em alguns Estados democráticos, nos quais, grosso modo, visa tornar o mais difícil possível a conformação de uma maioria parlamentar. Isso “empurra” tendencialmente os governos eleitos à busca pela conformação de coalizões com outros partidos e setores que não necessariamente concordam com o projeto de governo da situação, o que significa que para conformar uma maioria parlamentar capaz de aprovar os projetos de governo que foram democraticamente aprovados por maioria popular em eleições livres, a situação tenha que buscar alianças inclusive com setores ideologicamente afastados de suas convicções. Em poucas palavras, obriga os governos eleitos a uma negociação incessante que em última instância modifica o projeto eleito democraticamente em igual medida ao tamanho da coalizão. O presidencialismo de coalizão cria um artifício burocrático para impedir quaisquer “radicalizações” na política de governo, burocratiza as decisões, é o responsável direto pelo crescimento desnecessário da máquina estatal (que vem a ser loteada em suas negociações) e desfavorece o trabalho da oposição. O presidencialismo de coalizão é, portanto, um dos elementos que faz com que a maior parte dos partidos fisiológicos baixem suas bandeiras e valores para centrarem-se na negociação e na disputa pela maior porção possível do aparelho decisório [13]. O fato de que no caso brasileiro a transição democrática foi desenhada por aqueles que “efetivamente” realizaram-na, fez com que o presidencialismo de coalizão caísse como uma luva para os planos de uma transição “segura”.
A noção sobre o significado do fenômeno do presidencialismo de coalizão e de suas implicações políticas na vida democrática será crucial para entendermos parte dos fatores que levaram o Partido dos Trabalhadores a adotar a postura presente no seu primeiro exercício de governo presidencial (2003-2014). Precisamente, porque, para entendermos a proposta histórica do PT para o país temos que voltar um passo atrás no eixo argumentativo de todo esse artigo, a saber, o das tarefas nacional-democráticas. Estas, que em 1964 assumiam a forma das reformas de base passam a assumir a partir do início do processo de redemocratização (ainda nos anos 1980) a forma do projeto democrático-popular. E em que consiste este projeto? Rapidamente poderíamos dizer que o projeto democrático-popular foi o primeiro grande projeto do PT de conformação de uma aliança dos trabalhadores do campo e da cidade com os setores médios para consolidar uma frente forte o suficiente para disputar a hegemonia da Nova República e da sociedade brasileira, a fim de levar a cabo as mesmas reformas de cunho socializante e democratizante que pressupunham o cumprimento das tarefas nacional-democráticas de maneira como já expomos anteriormente. Porém, cabe aqui a crucial distinção entre o projeto democrático-popular e as propostas nacional-democráticas que os comunistas propunham até os anos 1970: diferente da concepção etapista dos comunistas do PCB dos anos 1960, o projeto democrático-popular tinha débil perspectiva socialista e, mesmo não descartando o fato de que algumas correntes mais a esquerda desse campo defendessem o “socialismo”, este não o era de modelo soviético ou chinês (os quais eles eram muito críticos), se não um modelo de “socialismo” que não promoveria qualquer ruptura nem com a modernidade burguesa, nem com a propriedade privada dos meios de produção. Em outras palavras, uma proposta de “capitalismo humanizável” ou “desenvolvimento responsável” fomentada pela conjuntura dos anos 1990 de derrocada do bloco soviético no Leste europeu e de socialdemocratização de grande parte dos partidos comunistas em todo o mundo, do qual o PCdoB é o exemplo mais latente em nosso país.
O abandono do PT atual as suas teses históricas é um complicado processo que já vinha se consolidando desde 1991, que amadurece com a Carta aos Brasileiros de Lula em 2002 e que atinge seu ápice (a meu ver) com a postura do governo federal frente às manifestações populares em 2013 e os preparativos pra Copa 2014. De todo modo, cabe-nos aqui apenas indicar para efeito discursivo que o PT transformou-se efetivamente num partido de postura socialdemocrata, num partido de centro. Minha tese reside embrionariamente no fato de que o presidencialismo de coalizão forçou o PT a tomar a decisão entre: conformar-se a ordem estabelecida pela Nova República e abrir o jogo de negociações com as diferentes forças políticas e frações de classe da burguesia e, através da conquista de espaços na máquina estatal, promover reformas de cunho socializante sem a perspectiva com uma ruptura com a sociedade de classes; ou optar pela mobilização das massas populares e dos aparelhos legítimos de organização dos trabalhadores para impor, por fora do Congresso Nacional, uma maioria popular capaz de realizar as reformas independente de uma provável maioria da oposição parlamentar (como foi a decisão de Chávez em um dado momento na Venezuela). Optou conscientemente pelo primeiro desde os primeiros anos de governo Lula. A única diferença latente do caso do governo do PT para a postura que apresentamos nas frases anteriores, é que neste caso particular, devido ao peso histórico que o partido exerce em uma importante fração dos movimentos sociais e do movimento sindical, pela origem comum que esse mantém com tais movimentos, o PT cooptou as principais lideranças dos movimentos dos trabalhadores para a entrada na coalizão da situação, servindo a este como peso de régua em várias negociações. Para dar um exemplo, mesmo as reformas de “tentativas democratizantes” que foram empregues nos governos do PT ocorreram de maneira conciliatória entre as lideranças sindicais e os interesses de importantes frações de classe da burguesia, dos quais a Reforma Universitária (REUNI), a Reforma da Previdência Social, as “tentativas” de Reforma Agrária, o Acordo Coletivo Especial e as políticas de distribuição de renda como Fome Zero e Bolsa Família são exemplos importantes.
Os resquícios do projeto democrático-popular propõem sobretudo uma disputa da direção do desenvolvimento nacional, o qual tem como a formação de um mercado interno seu principal norte. Daí a proposta de políticas de transferência de renda, pois estas promoveriam a “integração social”, dariam um poder econômico estável à grande maioria da população que ela nunca teve desde a ditadura civil-militar, o que possibilitaria o crescimento da produção industrial e da economia nacional. Mas, em momento nenhum esse governo aponta para uma “ruptura com o capitalismo”, ao contrário, e faço questão de enfatizar isso, o resultado final de todas as políticas de cunho socializantes que operam dentro da própria lógica do capital e que não possuem caráter estrutural de direitos sociais consolidados é, em última instância, a do próprio fortalecimento da produção agroindustrial, da exportação de capitais e do fortalecimento dos monopólios da burguesia. Não a toa, os maiores partidários do Bolsa Família são os representantes da associação patronal do capital industrial, a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) [14]. Acontece que no Brasil, parece existir uma fração de classe de caráter reacionário que não aceita o fato de que hoje é um partido socialdemocrata de centro com histórico operário quem dirige os negócios da burguesia brasileira e aprofunda as contradições do capitalismo no país. Esse fenômeno não é totalmente novo, uma vez que a socialdemocracia sempre foi o bode-expiatório da história, amplamente criticada tanto pelos que estão a sua esquerda, quanto pelos que estão a sua direita. Vale lembrar também que o governo federal cumpre hoje uma agenda imperialista graças ao grau de monopolização que o capital brasileiro historicamente atingiu. A inserção subordinada do capital brasileiro ao capital imperialista internacional fez com que o Estado brasileiro durante o governo do PT mais que nunca expandisse sua influência nos mercados estrangeiros. Os principais exemplos que podemos apontar são o da liderança brasileira na ocupação militar imperialista do Haiti (MINUSTAH), o do fortalecimento do Brasil como liderança nas relações econômicas e políticas Sul-Sul e o da exportação de capitais de grandes monopólios brasileiros (sobretudo da construção civil) para a exploração de riquezas e para produção em países africanos e latino-americanos (inclusive na Venezuela e em Cuba).
Concluindo, cabe-nos fazer uma reflexão sobre a suposta atualidade das tarefas nacional-democráticas, em todas as suas formas. O problema do desenvolvimento nacional, do qual as tarefas e reformas eram tidas como um dos caminhos para esse desenvolvimento, parece ter se esgotado historicamente. Mas por que afirmamos que a defesa do “avanço do processo democrático” não é mais plausível para o Brasil? Esse argumento parece inclusive contraditório, pois é notável do ponto de vista do proletariado que a democracia em que vivemos é excludente e meramente formal. Como afirmar que o projeto de avançar nas reformas socializantes está esgotado no Brasil, se a concentração de renda e a pobreza continuam a possuir números assustadores? Não me esquivarei de responder tais perguntas em detalhes, mas precisamos retomar ao tema do desenvolvimento. Responderia como contra argumentação a estas indagações consistentes que o esgotamento das tarefas nacional-democráticas advém do próprio estágio de desenvolvimento do capitalismo no Brasil. Os problemas sociais que assolam o país são fruto próprio do desenvolvimento do modo de produção capitalista, de sua completa expansão para todos os setores da vida social. Não há hoje do Oiapoque ao Chuí um único indivíduo que esteja fora de relações capitalistas de produção, nem há quaisquer formas pré-capitalistas de organização do trabalho que persistam competindo com uma expansão das formas capitalistas. A ditadura civil-militar foi a principal responsável por impulsionar a sociedade brasileira a atingir sua fase madura de sociabilidade burguesa; de atingir seu mais alto grau de expansão no domínio territorial da Nação; de conformar uma classe burguesa poderosa; de erigir grandes monopólios de sociedade entre capital brasileiro e capital estrangeiro; de consolidar um aparato jurídico-político completo; e de construir um Estado que cumpre internacionalmente (ainda que de maneira subordinada) a agenda do imperialismo. A existência de miséria e “subdesenvolvimento” não é por uma suposta falta de “capitalismo” ou de desenvolvimento nos rincões do país, mas precisamente pelo desenvolvimento das contradições próprias que a lógica de acumulação do capital proporciona.
Afirmar que o capitalismo brasileiro é um capitalismo maduro ou completo não significa, entretanto, dizer que ele não tem pra onde “crescer”. Ao contrário, no cenário em que vivemos de aprofundamento da crise internacional capitalista de 2008 e da ampliação do pagamento dos “custos sociais” da crise pelo proletariado em vários países, a reestruturação produtiva e a consolidação de novas taxas de acumulação de capital são sempre uma alternativa em questão. Em poucas palavras, a produção cresce (ou retoma seu crescimento em período de crise), mas a apropriação dos lucros da produção é cada vez maior por uma parcela cada vez menor da população inserida na cadeia produtiva. Por isso, de nada adianta crescer a economia se esta é baseada na lógica da apropriação privada do capital; sua consequência será sempre a de aumentar a desigualdade econômica entre aqueles que vendem sua força de trabalho e aqueles que se apropriam do produto do trabalho alheio. O Estado não pode romper com essa lógica enquanto estiver nas mãos daqueles que se beneficiam dela. Um determinado governo pode então, conforme as condições políticas e históricas de momento, apenas de maneira limitada, “maquiar” a forma que o Estado assume, implantando políticas públicas que “suavizem” as discrepâncias materiais da sociedade, mas isso não altera seu conteúdo; o conteúdo próprio do Estado burguês como garantidor da propriedade privada dos meios de produção, da livre compra e venda da força de trabalho e da acumulação privada da riqueza socialmente produzida. Nesse sentido, a conclusão que chegamos aqui é de que as tarefas nacional-democráticas não são tarefas em atraso, mas sim tarefas conscientemente deixadas para trás por aqueles que dirigiram e aqueles que hoje dirigem o desenvolvimento nacional.
·         Elementos para uma conclusão:
Que tarefas temos nós então para com a “naturalidade” de nossa herança autoritária? De que maneiras esta se desenha no cotidiano da sociedade brasileira? Essas são perguntas demasiado complexas, das quais quaisquer conclusões estão muito aquém da minha capacidade elucidativa de discutir aqui resumidamente com clareza e precisão. Uma exposição tão precisa parece-me precipitada, porque, em tempos de conjuntura acelerada, sempre é mais provável que a realidade atropele as previsões daqueles que se põem a analisá-la. Por isso, os elementos aqui expostos visam acumular para um necessário debate sobre a conduta que qualquer indivíduo minimamente progressista e consciente das tarefas civilizatórias de nosso tempo deve ter a cerca da realidade da ampla maioria da população brasileira.
A conjuntura abriu, através da mudança de sua correlação de forças que ocorre muitas vezes de maneira inesperada, uma brecha histórica para o problema da herança autoritária, a saber, a oportunidade de finalmente conformar uma Comissão Nacional da Verdade (CNV) que possibilitasse a investigação e a elucidação dos crimes políticos cometidos pelo Estado brasileiro contra a oposição durante o regime autoritário. É bom que se diga que a abertura dessa investigação é fruto de uma imposição internacional ao Estado brasileiro e não de uma imposição por uma maioria consolidada na política interna. A CNV é fruto de uma sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA contra o Estado brasileiro pela incompatibilidade entre os acordos de direitos humanos que o Brasil era signatário (dos quais o mais importante foi assinado durante o governo Fernando Henrique Cardoso em 1997) e a omissão da Justiça brasileira com o julgamento de torturadores e assassinos que estão em situação de liberdade, o que obrigou o Brasil a estabelecer sistemas de justiça de transição para assumir definitivamente uma versão “oficial” (ou estatal) da História nacional. É bom que se diga que o Brasil é, entre todos os países que efetuaram transições de regimes autoritários para democráticos a partir da segunda metade do século XX, aquele que mais atrasado estava na implantação de uma justiça de transição. Ou seja, embora a apuração dos crimes seja quase um consenso na opinião pública há algum tempo, o governo Lula em oito anos não teve a capacidade de cumprir uma agenda histórica não apenas de seu partido, mas também de todas as forças democráticas, devido às consequências administrativas e políticas do rompimento com seu pacto de coalizão. Isso significa que, na minha opinião, foi o fenômeno do presidencialismo de coalizão que levou, dentre outras coisas, o governo do PT a postergar a abertura da CNV e o debate sobre a Lei de Anistia, sobretudo durante a gestão de Lula, evidenciando um contrassenso às aspirações dos setores organizados dos trabalhadores e movimentos sociais que historicamente apoiaram a coalizão governista
Mas não parou por aí. A discussão iniciou-se de maneira acalorada a cerca da composição das pastas da CNV, da temática a ser abordada e da culpabilidade dos crimes cometidos. As direções das forças armadas, que queriam obter uma metade de cadeiras, foram derrotadas e ficaram não apenas com uma minoria como não conseguiram aprovar a investigação sobre militantes de oposição. Com o argumento de que a oposição já foi devidamente investigada e penalizada, enquanto os executores de torturas e assassinatos a mando do regime nunca foram formalmente nem investigados, nem penalizados (embora tenham sido anistiados), as forças políticas do centro e da esquerda conseguiram grande vitória na composição estrutural da CNV. Entretanto, a conjuntura, da mesma maneira que abre possibilidades, expõe pela correlação de forças os limites políticos de determinadas ações. Isso significa que, na medida em que a abertura da CNV vislumbrou um avanço democrático real para o país, a correlação de forças favorável ainda ao grande capital em detrimento das forças mais progressistas impediu que as investigações se estendessem para a participação efetiva da sociedade civil durante o regime, tendo sido restringida apenas aos agentes de Estado. Ou seja, a CNV abriu mão logo de princípio da investigação sobre crimes cometidos por colaboradores civis com a repressão durante o regime militar. Tivesse sido a conjuntura favorável às forças de esquerda, a justiça de transição deveria (como o fez em outros países) investigar a colaboração de empresários com as “listas negras”, com o financiamento de operações secretas, de violação de direitos humanos e trabalhistas dentro das fábricas, empresas e fazendas e de conflitos no campo envolvendo o assassinato de famílias camponesas que resistiram à expropriação de suas terras por grandes latifundiários e as recentes denúncias de exploração de trabalho indígena escravo em fazendas de Minas Gerais nos anos 1970. Mas, obviamente, isso dependeria de uma correlação de forças favorável o que é histórica e politicamente impossível (acredito que até o presente momento) dado o caráter da transição brasileira ao regime democrático provocado “pelo alto” e sem rupturas com a institucionalidade anterior. Outro exemplo das limitações da conjuntura foi a derrota do projeto de revisão da Lei de Anistia pelo Superior Tribunal Federal em 2011.
Mas a conjuntura mais uma vez acelerou-se inesperadamente em 2013, pegando até mesmo os mais otimistas de surpresa. Os problemas sociais e econômicos que têm sido gerados com o crescimento da acumulação de capital com a aproximação dos chamados “megaeventos” no Brasil possibilitaram intensas manifestações populares a partir de junho que ganharam ampla adesão da opinião pública. Os gastos abusivos com a construção de equipamentos esportivos, a corrupção, a privatização generalizada (de hospitais, portos, aeroportos e estádios – com seu ápice no Maracanã), o avanço do processo jurídico-econômico da precarização das relações de trabalho, sobretudo da juventude, a inflação especulativa nos centros urbanos que receberão os eventos (com o Rio de Janeiro como principal exemplo), as reivindicações salariais de várias categorias, a militarização de bairros populares e a escalada expressiva da violência policial nas favelas com a política de “pacificação” (de paz dos cemitérios...), a relação fisiológica entre máfias de empresários e o poder público e partidos fisiológicos, entre outras coisas, culminou num processo de avanço da insatisfação e de possibilidades maiores de diálogo com a classe trabalhadora. As manifestações populares que se iniciaram então, sobretudo durante suas fases de maior radicalização, empenharam forte crítica aos meios de comunicação, a bancos privados e ao aparato policial, o que ganhou muita notoriedade na opinião pública nacional e internacional. Essa crítica expressou-se ora politicamente por bandeiras e dizeres, ora por ações diretas violentas das massas contra os referidos acima. O avanço inegável das forças progressistas a partir das mobilizações de junho fez com que importantes frações de classe que historicamente apoiaram o golpe militar recuassem o que foi decisivo para o avanço democrático das investigações da CNV e da possibilidade real de nova revisão da Lei de Anistia. Em outras palavras, o exemplar recuo das organizações Globo na defesa da não punição aos torturadores, que se expressa até agora de forma máxima no editorial do jornal O Globo de agosto de 2013 que realiza uma autocrítica da empresa reconhecendo que “o apoio editorial ao golpe foi um erro” [15], é uma resposta clara aos incômodos gritos de centenas de milhares de pessoas veiculados em toda a imprensa de que “a verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura... e ainda apoia!”.
O avanço das investigações da CNV fez com que algumas frações de classe burguesa entoassem a crítica conjunta de boa parte do alto oficialato das forças armadas de que aquela comissão estaria provocando uma “crise nos meios militares” [16]. Ora, queria registrar aqui a minha avaliação, que é baseada nos argumentos que discorremos anteriormente. Avaliando-se o complexo movimento político das forças em disputa, parece-me que quem causou uma suposta “crise” nos meios militares não foi a instalação da CNV, mas sim o recuo sistemático que vêm ocorrendo por parte de importantes frações de classe burguesa que desempenharam papel fundamental no apoio do regime autoritário, uma vez que uma parte importante dessa não tem se mostrado disposta a arcar com as possíveis consequências políticas da defesa de seus antigos aliados militares “executores” do regime, devido ao peso que elas podem vir a ter em um momento mais desfavorável da opinião pública em relação aos mesmos. Isso me parece importante e tem paradeiro histórico em outros momentos de justiça de transição em outros países. Salvas e guardadas as devidas (e grandes) proporções, cito o caso da “desnazificação” da Alemanha pelos Aliados pós-1945. Em especial na República Federal Alemã (ocidental), muitos casos julgados no Tribunal de Nuremberg chamaram atenção pelo fato de antigos membros do partido nazista (NSDAP) terem delatado alguns dos operadores de crimes contra os direitos humanos em campos de concentração e crimes resultantes dos trabalhos do Estado nazista em geral. Quando os Aliados que ocuparam a parte ocidental da Alemanha decidiram não efetuar prisões de cidadãos alemães pelo simples fato de esses terem pertencido ao NSDAP, decidiram também aliviar a penalização de empresários que compactuaram ou se beneficiaram do regime através da utilização de trabalho escravo em campos de concentração (como a Siemens em Auschwitz). Posteriormente, um grupo importante desses mesmos empresários foi responsável por elaborar “listas negras” de políticos e funcionários do regime nazista, o que possibilitou a prisão e o julgamento de alguns desses. Ou seja, foi naquele momento o recuo desses setores que possibilitou a punição a articuladores e operadores do regime autoritário anterior. Obviamente as condições históricas e politicas dessas diferentes realidades não são nem de perto compatíveis, mas, com efeito, utilizei de um exemplo para ilustrar algumas consequências possíveis que uma determinada alteração na luta de classes pode provocar politicamente. E o mais importante é que, para que as possibilidades de punição do processo de justiça de transição avancem, é necessária uma intensificação do recuo desses poucos setores de sustentação que ainda restam. Não me sobram dúvidas que, da mesma maneira que aceleram esse processo, cabe às massas organizadas e aos partidos de esquerda que se apresentam nas lutas cotidianas da classe trabalhadora, o papel de conformar ainda mais uma maioria na opinião pública favorável ao avançar do processo democrático, intensificando a denúncia contra esses setores da sociedade civil que dão lastro aos torturadores; além da propaganda favorável à revisão da Lei de Anistia de 1979 para julgar aqueles que foram anistiados sem nunca terem sido julgados por nada.
Estou convencido de que o avançar desse processo de lutas pode não apenas levar a um fechamento favorável dos trabalhos da CNV, como a implicações políticas importantes, tais como a aprovação do projeto de lei de revisão da Lei de Anistia e a abertura dos arquivos secretos das forças armadas. Porém, a tarefa democrática dos setores progressistas não para por aí. Sempre que vitórias, ainda que parciais, são alcançadas na conjuntura política, abrem-se novas possibilidades de luta, abrem-se novas possibilidades de avanço dessas forças. Isso significa que, essas vitórias relativas à justiça de transição podem desencadear num avanço do processo de questionamento com forte presença de opinião nas massas populares a respeito da nossa herança autoritária como um todo. Em outras palavras, a criminalização e a punição efetivas aos torturadores do passado abre concretamente a possibilidade de questionamento da não criminalização dos torturadores do presente. O avanço dessas lutas abre a possibilidade de conformar um movimento real com organização e pauta unitária de reivindicação pelo fim da institucionalização da tortura nas forças auxiliares, a saber, sobretudo, na Polícia Militar. Pode também, finalmente, unificar os diversos movimentos populares espontâneos que têm surgido, sobretudo em áreas de favelas, contrários à Polícia Militar, pelas suas atitudes institucionalizadas de autoritarismo formal e repressão violenta, além de seu papel central na criminalização da população negra, na criminalização da pobreza e de manifestantes. As Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), que são a forma de organização e gestão política do aparato policial sobre áreas de favelas ocupadas pelas forças do Estado, operam sobre artifícios legais de suspensão de direitos democráticos (como o direito à liberdade de opinião) em seus territórios, substituídos pelas ordens do alto comando das unidades. A repressão aos direitos democráticos da população trabalhadora favelada tem gerado grande insatisfação popular que sistematicamente tem sido disfarçada pela maior parte dos meios de comunicação, porém contrastada em manifestações espontâneas e violentas dessas massas populares. É importante entender que a suspensão de direitos constitucionalmente democráticos em qualquer área que seja dentro do território nacional pressupõe um grave crime contra o próprio Estado Democrático de Direito instalado em 1988, que, embora esteja fadado a uma democracia meramente formal, pressupõe artifícios legais de proibição de tais práticas por parte da política de Segurança Pública e das Polícias Militares. A desmilitarização do Estado, do qual o fim da Polícia Militar com sua consequente transformação numa corporação civil controlada e regulada pela população, apresenta-se não só como um passo a frente na luta a ser travada pelas forças progressistas, bem como uma necessidade imediata para diminuir ao menos pela metade o número de homicídios no Brasil e os casos de graves violações dos direitos humanos contra a população trabalhadora.
Por fim, cabe-me aqui concluir que o que o Brasil deixou para trás em 1º de abril de 1964 foi propriamente a alternativa de outro modelo de desenvolvimento nacional, que poderia ter levado a um avanço real das tarefas nacional-democráticas e da democracia burguesa como um todo, levando-se em conta suas possibilidades, mas sobretudo seus limites. Afinal, a democracia é apenas a forma de organização política que assume o Estado, que deve sempre ser entendido como um artifício instrumental - que no caso de uma sociedade de classes que pressupõe necessariamente a dominação de uma classe detentora dos meios de produção e que, consequentemente, tem maior poder na destinação final do excedente econômico, contra outra classe composta por aqueles que necessitam vender sua força de trabalho para sobreviver - deve sempre ser entendido como um instrumento de classe. Em outras palavras, poderíamos ter tido, ao menos por algum tempo, uma sociedade capitalista mais “humanizada”, algo mais aproximado de um modelo europeu chamado de Estado de bem-estar social, do qual, sem dúvidas, o papel da oposição comunista nas trincheiras da luta de classes apresentando o socialismo como uma possibilidade real (e a época ainda mais palpável) de governo do proletariado para si mesmo, e da liderança histórica exercida pelo movimento comunista nas lutas por direitos trabalhistas, teria desempenhado uma função fundamental na construção dessa forma de Estado. Mas na História concreta não há “se”. Este existe apenas nas mentes desvairadas do curioso estudioso em História. O ponto é que o desenvolvimento de uma sociedade plenamente capitalista sobre bases monopolistas intensificou ainda mais a radicalização politica entre as alternativas que se apresentam à luta de classes: ou o caminho da intensificação ora autoritária ora conciliatória da exploração do trabalho, ou a ruptura política e econômica com o modus operandi da sociedade capitalista. Em outras palavras, os interesses gerais da ampla maioria da população brasileira, que em alguma escala poderiam ser expressos nas tarefas nacional-democráticas, são plenamente inconciliáveis com o modelo econômico adotado pela economia de mercado e por suas consequências no plano político, como o Estado burguês e o imperialismo. Podemos conseguir avanços pontuais e não digo aqui que não devemos lutar por eles. Ao contrário, devemos empenhar toda nossa força em sua execução, mas aqueles que desejam “radicalizar” o processo de democratização do poder, de transferência de poder e de riqueza das elites para o povo, devem entender que esse processo de “radicalização” é limitado muito aquém de nossos interesses pelo modelo societário no qual vivemos. É imprescindível não incorrer no erro de que o Estado pode conceder ao povo aquilo que ele essencialmente não se predispõe a fazer, o que significa que qualquer suposto “subdesenvolvimento” do país seria uma consequência do Estado burguês não cumprir suas tarefas de modo “correto”. Ao contrário, ele cumpre sua tarefa da maneira mais “correta” possível; ele apresenta-se como o principal empreendedor da economia capitalista no país e quaisquer “subdesenvolvimentos” são precisamente frutos das contradições inerentes do avanço do processo de acumulação privada do capital. Esses são em última instância os limites da moderna sociedade burguesa que construímos em nosso país. Quaisquer apreciações valorativas a respeito de que posição tomar quanto a isso, deixaremos ao bem-estar da consciência de cada um.
·         Notas bibliográficas:
[1] Ver FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, Globo, 2006.
[2] Ver COSTA, Ricardo. Gramsci e o conceito de hegemonia. Salvador/São Paulo: ICP, 2011.
[3] Ver LÊNIN, V.I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo. Moscou: edições progresso, 1979.
[5] Ver documento Teses acerca do movimento revolucionário nos países coloniais e semicoloniais do VI Congresso da Internacional Comunista de 1928. Disponível em: http://marxists.org/portugues/tematica/1928/09/teses_comintern.htm.
[6] Opt. Cit.
[7] Para uma exposição geral do fenômeno indico Dicionário de política organizado por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, importantes cientistas políticos liberais. O livro foi editado no Brasil pela Universidade Nacional de Brasília. Ver BOBBIO, Norberto et. Al. Dicionário de política. V.I & V.II. Brasília, ed. UnB, 2008.
[8] Infelizmente não temos tempo de discutir mais detalhadamente nenhum destes três aspectos, mas particularmente gostaria de deixar duas indicações. A primeira, do premiadíssimo documentário O dia que durou 21 anos (2012) de Camilo Tavares, que expõe gravações inéditas no Brasil de John Kennedy, então presidente dos EUA, articulando uma conspiração contra Jango desde 1962. Vale ressaltar que, diferente dos arquivos militares brasileiros, mesmo nos EUA estes arquivos já foram tornados públicos. Já a segunda, do também premiado documentário Cidadão Boilesen (2009) de Chaim Litewski que fala sobre a atuação do grande empresário dinamarquês dono da empresa Ultragás, Henning Albert Boilesen durante a ditadura. Sua atuação consistia em articular no meio empresarial, inclusive entre as grandes metalúrgicas e montadoras de São Paulo, financiamento para a Operação Bandeirantes (OBAN) precursora do modus operandi do DOI-CODI. Por gostar de assistir e participar das sessões de torturas, Boilesen foi reconhecido por prisioneiros que escaparam da morte. Em 1971, a Ação Libertadora Nacional, grupo guerrilheiro liderado por Carlos Marighella, assassinou Boilesen em São Paulo com 21 tiros alegando motivo de justiciamento.
[9] Ver DREIFUSS, René. 1968: A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 2008.
[10] Ver SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos: comunistas e sindicatos no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001.
[11] Dados disponíveis no dossiê tortura nunca mais em: http://www.torturanuncamais-sp.org/site/.
[12] Dados tabelados disponíveis em SINGER, André. Os sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Cia das Letras, 2012.
[13] Gostaria de mencionar aqui que alguns estudos recentes apontam uma grande semelhança entre Brasil e Espanha na “transição por cima” que acabou com a vertente franquista do fascismo e a formação de uma democracia baseada no presidencialismo de coalizão.
[14] Isso não significa que não haja uma fração importante da classe burguesa que sustenta um apoio crítico ao governo federal, do qual seu principal exemplo é a fração dos monopólios de comunicação e de imprensa. Entretanto não caberá a nós aqui falar sobre esse assunto.

[16] Um dos argumentos expostos é de que as investigações desprestigiariam os comandantes do alto escalão em relação aos seus comandados oficiais e suboficiais que discordam politicamente desses. Isso significaria, nas palavras de seus partidários, uma “grave quebra no valor da hierarquia das forças armadas”. Ora, independente de qualquer juízo de valor a respeito da hierarquia como forma de organização política de qualquer instituição, fica evidente que os partidários de tais argumentos querem utilizar a hierarquia não como um valor, mas como um instrumento político para garantirem seu poder dentro desses aparatos coibindo a possibilidade de um processo democrático (no sentido de maior liberdade de manifestação de opiniões por parte dos comandados) dentro das próprias forças que leve a um debate sobre qual posição as forças devem tomar diante desse processo. Apresenta-se aqui, então, uma disputa entre hierarquia e legitimidade. O argumento hierárquico pretende sobressair ao argumento da legitimidade política de tais comandantes, o que, na minha opinião, não deveria jamais acontecer. Sou partidário da posição de que sempre devem sobressair as tomadas de posição de maior legitimidade, ou seja, das tomadas de posição que sejam de opinião da maioria, independente das posições dos indivíduos em qualquer sistema hierárquico. Parece-me que o doloroso silêncio das forças armadas até hoje sobre os acontecimentos da justiça de transição é uma tentativa do alto comando (responsável por decisões consideradas “oficiais”) de evitar qualquer perda de legitimidade com seus próprios comandados, o que resultaria num isolamento político ainda maior para estes.