05 julho 2007

Violência no Rio de Janeiro.



Entrevista com Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca mais do Rio de Janeiro. Cecília é psicóloga e professora da Universidade Federal Fluminense. O Grupo está envolvido na apuração e na denúncia do massacre no Alemão, indo ao local e ouvindo os principais envolvidos: os moradores.Cecília criticou a forma como foi veiculado o caso na grande mídia e contou alguns relatos de crimes cometidos pelos policiais, feitos por moradores do Alemão ao Tortura Nunca Mais. Entrevista concedida por telefone no último sábado, 30 de junho e publicada no portal do pstu.


O que aconteceu no Alemão, na quarta-feira, chocou o país inteiro e teve repercussão internacional. O secretário de segurança disse que quem não era bandido virou, porque resolveu enfrentar a polícia. E o que a gente vê são fotos até de crianças.

.Cecília – Tem crianças sendo degoladas, inclusive, diante das mães. Nós tivemos um caso de um menino de 13 anos e existem outros casos que os moradores informaram ontem [29/7/2007].


Os moradores estão com muito medo, porque eles ficam no meio do tráfico e da polícia. A polícia está muito mais violenta do que o tráfico, com invasões de domicílio, com essa coisa de degolar, inclusive de enfiar facão e degolar crianças.Houve relatos de roubos também. Isso está mesmo acontecendo?

Cecília – Invasão de domicílio e roubos. Isso aí sempre aconteceu em toda e qualquer invasão de favela. É o cara que bota o pé na porta e invade a sua casa como se fosse casa de ninguém. É uma coisa que a gente diz: será que a guarda nacional vai para a zona sul, para as áreas nobres do Rio de Janeiro? O “caveirão”, que vive andando aqui nas favelas do Rio, será que ele percorre as ruas da zona sul do Rio de Janeiro, os bairros de elite? São perguntas que a gente tem de fazer. A gente não pode naturalizar isso. E a grande massa da população brasileira, porque está tendo as suas cabeças feitas pelos grandes meios de comunicação de massa, acham sim que bandido tem de ser morto, que, se é bandido, até merece ser torturado e morto. É essa “política de tolerância zero” que está em vigência aqui.É terrível. Nós somos minoria, porque a gente não tem acesso aos grandes meios de comunicação de massa e a gente é desqualificada – os movimentos de direitos humanos – como “aqueles que defendem bandidos”. Temos de pensar por que isso é dito. Quando a gente acha que direitos humanos também devem ser estendidos aos pobres, a todos aqueles que nunca foram considerados como humanos, a gente passa a ser “defensora de bandido”.


O governo anunciou que vai voltar ao Alemão e que vão ter outras seis operações iguais – Cidade de Deus, Mangueira, Maré...

Cecília – Isso foi denunciado ontem. A companheira nossa, que está acompanhando, junto com o Justiça Global e outras entidades, essa invasão do Complexo do Alemão, colocou, inclusive, que tem um plano nacional de segurança pública, que vem dentro da “política de tolerância zero”, de cercar as ditas zonas perigosas, cercar as favelas.Você acha que o “PAC da Segurança” do governo Lula, que prevê mais de R$ 400 milhões só para o Rio de Janeiro, tem a ver com aumento de repressão?Cecília – Sem dúvida que é aumento de repressão. O Globo de hoje diz o seguinte: “Força Nacional permanecerá no Rio, no segundo semestre, para cercar favelas”. Olha como se produz um território perigoso, onde mora a pobreza, como se toda a pobreza fosse bandida. E até é de se pensar que bandidos são esses que estão lá. Que “pé-de-chinelo” é este que está lá? É a mesma coisa que havia na África do Sul, no regime racista do Apartheid, de campos de concentração. As comunidades ditas perigosas começam a ser cercadas. É isso que está se passando.Os jogos Pan-Americanos acirraram esta situação?Cecília – Justamente. Não é por acaso o que está acontecendo no Rio hoje. O Pan está aí, semana que vem está acontecendo. É a limpeza das ruas, é essa coisa do “higienismo do século XX”, que hoje se maquia. Está com outra cara, dentro da “política de tolerância zero”. “Vamos limpara as ruas! Vamos tirar a sujeira que está nas ruas!” Não é através de políticas que possam tirar estas pessoas da situação miserável em que estão: é pela pura repressão. E aí todo mundo apóia. A “política de tolerância zero” dos estados Unidos coloca isso muito claramente: em nome da qualidade de vida de alguns, muitos precisam ser reprimidos. Em nome da qualidade de vida das elites, a pobreza tem de ser exterminada. Não tem emprego para todo mundo. O dito Estado de bem-estar social cada vez se minimiza mais, e se fortalece o Estado penal. É o Estado penal que está vigendo aqui, o Estado penal repressivo e punitivo.


Como está, neste momento, a situação no Rio? Como está reagindo a população, inclusive quem não está no morro?

Cecília – De um modo geral, a população que está sendo informada só pelos meios de comunicação de massa está achando que é isso mesmo. Cria-se um clima de terror e de medo muito grande. Cria-se uma paranóia coletiva, e as pessoas acham que para a sua segurança tem de matar o outro mesmo, tem de cercar estes lugares perigosos mesmo, tem de transformar isso em campos de concentração. É o problema da sua segurança: a classe média está apavorada. Não é que a violência não exista, a violência está aí. Agora, ela é apresentada de uma forma que cria pânico, cria terror, e esse medo é uma forma de controle social. Quanto mais tutela do Estado a gente pede, mais repressão a gente pede, mais a gente está podendo ser atingido por essa repressão do Estado. Não tenhamos dúvidas disso.Eu ontem estive conversando com uma psicóloga, ex-aluna minha, que trabalha no Centro de Saúde do Morro do Alemão. Fora os depoimentos que a gente tem tido dos companheiros das entidades e da nossa companheira que estão indo lá. Os moradores dessa região estão apavorados. A população está com muito medo. Realmente, o terror dessas pessoas não aparece nos grandes meios de comunicação de massas. As barbáries que a Força Nacional e que a Polícia Militar estão fazendo no Complexo do Alemão não estão sendo mostradas. Mostram os arsenais de armas que foram apreendidos para justificar a matança. É muito sério, porque hoje a gente tem um outro dispositivo importante que controla e domina as mentes das pessoas, que são os meios de comunicação de massa hegemônicos. O que eles dizem passa a ser verdade. Ontem, por exemplo, a manchete do Globo transformava um cara que é um PM num herói, aparece fumando charuto. Esse cara, inclusive, segundo um depoimento de um morador de Acari, que esteve ontem no nosso evento, é uma pessoa conhecida das comunidades. Esse cara vira herói, fez o trabalho que tinha de ser feito. E sempre com a justificativa de estar indo contra os traficantes. Eu me lembro que, há alguns anos, a Marilena Chauí colocava uma coisa muito interessante que é: antes eram os terroristas, hoje são os traficantes. Isso justifica a repressão, e a população engole. Isso que é o pior: a população acha que isso é natural mesmo e se produz um individualismo cada vez maior, que é uma das pragas do capitalismo. “Eu cuido de mim e que se dane quem está do meu lado. Se ele é bandido, merece morrer mesmo, porque está pondo em risco a minha vida e a vida da minha família.” Entende? É este o pensamento hegemônico, infelizmente.


Até o momento, se tem notícias de que o centro de controle do tráfico tenha sido atingido ou fragilizado?

Cecília – Que eu saiba não. Eles apreenderam armas, mostraram armas na televisão, etc. e tal, fazem aquelas grandes mise en scénes, que são formas de justificar, mas a gente nem sabe se aquelas armas foram encontradas lá. Não se sabe.


Há alguma atividade prevista do movimento com relação ao massacre do Alemão?

Cecília – Hoje o pessoal está indo lá dentro do Complexo do Alemão. Várias entidades de direitos humanos vão entrar e tentar conversar com os moradores, fazer contato com os movimentos – há movimentos interessantes dentro do Complexo do Alemão. Na terça-feira, está programada uma manifestação para ver se o secretário de Segurança Pública recebe as entidades. Ontem e anteontem se fez manifestações na frente da Secretaria de Segurança Pública, mas o secretário só queria receber três entidades quando havia mais de vinte entidades presentes. Aí, ninguém aceitou isso.Na terça-feira, já tem programada uma ida à Secretaria de Segurança Pública. A gente soltou uma nota conjunta com várias outras entidades sobre essa situação. Estamos lá [no Alemão], tentando ter o apoio dos moradores do local, estamos mais próximos a eles. É o que a gente tem programado.


Leia também - "Violência, um grande negócio"- http://wallacecamargo.blogspot.com/2005_09_24_archive.html


Observatorio de favelas