11 julho 2020

Um sistema pós-democrático

 Por
Pierre Dardot e Christian Laval.
O neoliberalismo tem uma história e uma coerência. Combatê-lo exige não se deixar iludir, fazer uma análise lúcida dele. O conhecimento e a crítica do neoliberalismo são indispensáveis. A esquerda radical e alternativa não pode contentar-se com denúncias e slogans, muitas vezes confusos, parciais ou atemporais. Assim, é errado dizer que estamos lidando com o “capitalismo”, sempre igual a ele mesmo, e com suas contradições, que inevitavelmente levariam à ruína final. Eficácia política pressupõe uma análise precisa, documentada, circunstanciada e atualizada da situação. O capitalismo é indissociável da história de suas metamorfoses, de seus descarrilhamentos, das lutas que o transformam, das estratégias que o renovam. O neoliberalismo transformou profundamente o capitalismo, transformando profundamente as sociedades. Nesse sentido, o neoliberalismo não é apenas uma ideologia, um tipo de política econômica. É um sistema normativo que ampliou sua influência ao mundo inteiro, estendendo a lógica do capital a todas as relações sociais e a todas as esferas da vida. A obra que você lerá, e que finalmente está disponível em português graças à editora Boitempo, foi escrita no período de gestação da crise financeira mundial de 2008. Foi publicada no momento em que se podia constatar a amplidão dos estragos causados pelo neoliberalismo. A convicção que tínhamos ao escrevê-lapossuía fundamento: a crise não foi suficiente para fazer o neoliberalismo desaparecer. Muito pelo contrário, a crise apareceu para as classes dominantes como uma oportunidade inesperada. Melhor, como um modo de governo. Ficou demonstrado que o neoliberalismo, apesar dos desastres que engendra, possui uma notável capacidade de autofortalecimento. Ele fez surgir um sistema de normas e instituições que comprime as sociedades como um nó de forca. As crises não são para ele uma ocasião para limitar-se, como aconteceu em meados do século XX, mas um meio de prosseguir cada vez com mais vigor sua trajetória de ilimitação. O capitalismo, com ele, não parece mais capaz de encontrar compensações, contrapartidas, compromissos. A maneira como a crise de 2008 foi provisoriamente superada com uma inundação de moeda especulativa emitida pelos bancos centrais, mostra que a lógica neoliberal escapa de maneira extraordinariamente perigosa. O acúmulo de tensões e problemas não resolvidos, o reforço de tendências desigualitárias e desequilíbrios especulativos preparam dias cada vez mais difíceis para as populações. No entanto, o caráter sistêmico do dispositivo neoliberal torna qualquer inflexão das políticas conduzidas muito difícil, ou mesmo impossível, no próprio âmbito do sistema. Compreender politicamente o neoliberalismo pressupõe que se compreenda a natureza do projeto social e político que ele representa e promove desde os anos 1930. Ele traz em si uma ideia muito particular da democracia, que, sob muitos aspectos, deriva de um antidemocratismo: o direito privado deveria ser isentado de qualquer deliberação e qualquer controle, mesmo sob a forma do sufrágio universal. Essa é a razão pela qual a lógica não controlada de autofortalecimento e radicalização do neoliberalismo obedece, hoje, a um cenário histórico que não é o dos anos 1930, quando ocorreu uma revisão das doutrinas e das políticas do “laissez-faire”. Esse sistema fechado impede qualquer autocorreção de trajetória, em particular em razão da desativação do jogo democrático e até mesmo, sob certos aspectos, da política como atividade. O sistema neoliberal está nos fazendo entrar na era pós-democrática. Na ausência de margens de manobra, o confronto político com o sistema neoliberal enquanto tal é inevitável. Mas esse confronto também é problemático, porque é difícil reunir as condições em que ele se dá. O sistema neoliberal é instaurado por forças e poderes que se apoiam uns nos outros em nível nacional e internacional. Oligarquias burocráticas e políticas, multinacionais, atores financeiros e grandes organismos econômicos internacionais formam uma coalização de poderes concretos que exercem certa função política em escala mundial. Hoje, a relação de forças pende inegavelmente a favor desse bloco oligárquico. Além dos fatores sociológicos e políticos, os próprios móbeis subjetivos da mobilização são enfraquecidos pelo sistema neoliberal: a ação coletiva se tornou mais difícil, porque os indivíduos são submetidos a um regime de concorrência em todos os níveis. As formas de gestão na empresa, o desemprego e a precariedade, a dívida e a avaliação, são poderosas alavancas de concorrência interindividual e definem novos modos de subjetivação. A polarização entre os que desistem e os que são bem-sucedidos mina a solidariedade e a cidadania. Abstenção eleitoral, dessindicalização, racismo, tudo parece conduzir à destruição das condições do coletivo e, por consequência, ao enfraquecimento da capacidade de agir contra o neoliberalismo. O sofrimento causado por essa subjetivação neoliberal, a mutilação que ela opera na vida comum, no trabalho e fora dele, são tais que não podemos excluir a possibilidade de uma revolta antineoliberal de grande amplitude em muitos países. Mas não devemos ignorar as mutações subjetivas provocadas pelo neoliberalismo que operam no sentido do egoísmo social, da negação da solidariedade e da redistribuição e que podem desembocar em movimentos reacionários ou até mesmo neofascistas. As condições de um confronto de grande amplitude entre lógicas contrárias e forças adversas em escala mundial estão se avolumando. A esquerda somente poderá tirar partido disso se souber remediar a pane de imaginação que vem sofrendo. A falência histórica do comunismo de Estado contribuiu em muito para sua ruína. Se quisermos ultrapassar o neoliberalismo, abrindo uma alternativa positiva, temos de desenvolver uma capacidade coletiva que ponha a imaginação política para trabalhar a partir das experimentações e das lutas do presente. O princípio do comum que emana hoje dos movimentos, das lutas e das experiências remete a um sistema de práticas diretamente contrárias à racionalidade neoliberal e capazes de revolucionar o conjunto das relações sociais. Essa nova razão que emerge das práticas faz prevalecer o uso comum sobre a propriedade privada exclusiva, o autogoverno democrático sobre o comando hierárquico e, acima de tudo, torna a coatividade indissociável da codecisão – não há obrigação política sem participação em uma mesma atividade. Como escrevemos nas últimas linhas deste livro, precisamos trabalhar por uma outra razão do mundo.

Fevereiro de 2016
Prefácio do livro "A nova razão do mundo" editora Boitempo
Pierre Dardot e Christian Laval

02 maio 2020

Médico ou o Estado deve ter o direito de escolher quem viverá?

Entre tantas discussões que se dão neste momento de pandemia, me chama a atenção a da tentativa de racionalizar a escolha do médico entre os que viverão ,por ter acesso à ferramentas de ventilação pulmonar e os que não viverão, por escolha do médico(covarde atribuição a este profissional) ou do Estado, representado pela determinação da secretaria de saúde do município do RJ.
Ao tratarmos o médico como um técnico, retiramos dele a possibilidade de decisão, mas o mais escandaloso, é não entender o que está oculto neste debate, se é o médico ou o município de RJ quem determina quem continuará vivo ou não.
O primeiro argumento a ser pensado é a questão ética que faz com que haja uma suposta objetividade científica ou neutralidade sobre um discussão que é essencialmente filosófica e política.
A primeira questão é entendermos que a violação ética está apoiada no Estado que não cumpre, e não cumpria anteriormente ao advento do Covid19, sua tarefa que é de fazer do SUS universal, com atendimento de qualidade independente de idade ,raça, cor ,comorbidades e etc. Levemos em consideração que o SUS atende primordialmente aos mais pobres, e que o Estado e sua necropolítica, deseja escolher quem deve viver ou morrer, graças a falta de investimentos, ou corte de milhões de reais no ano passado praticado pelo governo federal, ou as desvinculações de receitas do SUS, nas últimas duas décadas.
A ética é violada quando o que se discute em quem tem autonomia ou não de escolher quem irá continuar a viver, penso que a raiz do problema está na destruição do Estado praticado por este governo, onde o paciente, cidadão,mais pobre, terá seu direito de viver julgado por um sistema capitalista mesquinho e cruel.
Há recursos disponíveis, quando pensamos em uma dívida pública que sangra milhões de dinheiro público,e que nunca foi auditada, ou a própria emissão de dinheiro, que não faz dívida do Estado, nem produz inflação em momento em que não há consumo,  usando da própria lógica dos economistas , seguranças de plantão do mercado.
O grande problema ético que se discute é o papel do Estado, se ele continuará a ter como prioridade o mercado ou se ele recuperará, como em outros tempos de crise capitalista, sua capacidade de investimentos sociais.
Que médicos tenham o direito de tratar a todos e não seja dado a ele ou ao Estado a fazer a escolha de quem não continuará vivendo.

09 março 2020

Epicuro, que causou boa impressão à Marx,pelo seu projeto de autonomia desalienante ensina que em tempos de obscuridade é possível o desvio. A vida em Epicuro é projeto de liberdade e expectativa ,possibilidade de mudança,porque,ela, a vida, não está dada, ela é projeto autônomo que impede as crendices e põe o ser humano ao alcance da transformação.

02 março 2020

Além de radical político(nunca sectário)também pratico religiosidade. Mas entre os tais prevalece a cegueira política. O dogma conforta as dores,mas não as elimina. A insegurança dos "tempos líquidos" alimenta preconceitos. No desespero dos mares revoltos,as massas doloridas se agarram em antigas e enferrujadas âncoras como se o passado e seus resultados ruins fossem mais seguros,suas éticas deterioradas soam como ancoradouros que esvaziariam riscos e frustrações. Os Homens fazem suas próprias histórias,e é verdade que não a fazem como querem,dizia o velho e atual Marx,nada mais referencial contra uma cultura capitalista frágil e efêmera que prevalece hoje. O indivíduo não existe,somos o resultado do esforço criativo do coletivo,e também não existe a liberdade e a "minha opinião", isso nada mais é do que a interação histórica,assim nos tornamos seres humanos. A ilusão da existência do indivíduo autônomo é uma das mais fortes ideologias, capazes de freiar a ruptura com o modelo de sociedade carcomida e mesquinha. Nenhuma palavra é tão atual quanto "Revolução", ato histórico coletivo e transformador que desfaz as amarras e correntes do individualismo que aparta,separa e produz sofrimento humano. O "não soltar a mão do outro" é uma das insígnas mais importantes para o este momento,significa que reconheço no outro a diferença que falta em mim,e aí vamos nos fazendo diariamente,produzimos rupturas,avançando e descartando em movimento permanente de acertos e erros,dialeticamente purgando-nos de correntes que nos fazem cordeiros da lógica do capital que quantifica e sacraliza prazeres temporários e nos afunda no consumismo afastando o espírito de solidariedade.
Quando um exército decide tomar parte no processo político, deixa de ser nacional para ser de uma facção." José Sócrates.

Aliás,a História do exército brasileiro é de condução da "Modernização conservadora",ao promover interesses do capital,desde sua fundação.

 Está na formação da própria instituição o papel de direção política. Nada há de neutro a quem deseja a conservação da ordem política injusta e desigual.