Por Pedro Bras Martins da Costa
Bacharel em ciências sociais pelo
IFCS/UFRJ
Dedico
este artigo a meu mestre e amigo Wallace Camargo, que com um gesto acolhedor de
amizade cedeu livremente um lugar neste blog para sua publicação.
·
Introdução:
Caro leitor, apresento pela primeira vez aqui
no Olhar este artigo que pretende ser
uma contribuição para pensarmos uma análise de conjuntura que possa esclarecer-nos
algo sobre os nebulosos dias que estão por vir. É importante dizer que o
presente texto foi produzido em consequência do aniversário de 50 anos do golpe
militar de 1964. A relevância da data não poderia deixar de ser imensa devido
ao contexto político que se constrói 50 anos depois com a vinda à tona de
revelações de antigos torturadores, de documentos dos serviços secretos, de possibilidade
real de revisão da Lei de Anistia e de punição aos torturadores, de
comemorações e “descomemorações” de grupos políticos que se enfrentaram nas
ruas e, sobretudo, do direito a herança do legado histórico do período
autoritário, o direito à memória. Entretanto,
acredito que o debate político atual sobre o recente passado autoritário da
sociedade brasileira, sobre sua transição à democracia burguesa e as disputas a
cerca da culpabilidade dos crimes cometidos durante os “anos de chumbo” são
questões que sobressaem no momento um problema particular que pode ajudar-nos a
entender um pouco da conjuntura nacional de 2003 para cá. De todo modo, estou amplamente convencido de que o
resultado dessa disputa será decisivo para a situação política que iremos
enfrentar no Brasil nos anos que estão por vir.
A pergunta que faço não poderia deixar de ser
simples, o que concomitantemente implica em ser perigosa para mim; quero dizer,
o que o Brasil deixou para trás em 1º de abril de 1964? Ora, nessa questão que
coloco, e sobre a qual pretendo trabalhar como eixo de minha argumentação,
aparecem dois pontos relevantes a serem respondidos: (1) é saber o que havia em
1964 que foi deixado para trás; e (2) que consequências a sua falta pode ter
tido 50 anos depois. Uma questão também relevante que poderia aparecer seria a
de uma pergunta semelhante em sentido contrário, a saber, “o que o Brasil teria
sido se não tivesse deixado o que ele deixou pra trás?”. Pois, o caminho desta
última é exatamente o que não quero percorrer. Vou ater-me ao fato de que
interessa-nos aqui somente fazer um exercício de política comparada entre a realidade histórica do que o Brasil era
e do que ele se tornou. Dito isso, adianto agora que o elo que utilizaremos
para falar sobre os anos que antecederam e sucederam ao golpe e os dias atuais
é o da política das reformas de base.
·
O
que havia antes do golpe?
As reformas
de base são particularmente um caso mal resolvido na história política do
Brasil. Quando João Goulart anunciou no famoso Comício da Central - que contava
com amplo apoio popular dos trabalhadores organizados - que levaria a frente
reformas socializantes independente da oposição da maioria do Congresso
(“reformas de base na lei ou na marra”), suscitou imediatamente uma resposta
dura das elites nacionais. As então chamadas reformas de base constituíam-se basicamente de quatro eixos: (1) reforma agrária, que pretendia realizar
a desapropriação forçada de grandes latifúndios improdutivos para distribuição
das terras à propriedade privada familiar gerida pelos camponeses que nela
trabalhavam. A reforma agrária com a Constituição de 1988 tornou-se uma tarefa
obrigatória do Estado brasileiro; (2) reforma
eleitoral, que pretendia principalmente estender o direito de voto aos
analfabetos que representavam em 1960 uma parcela muito ampla do proletariado e
das camadas populares. Vale lembrar que esse direito também só foi concedido em
1988; (3) reforma educacional, que
pretendia universalizar o acesso ao ensino fundamental e a alfabetização, bem
como a expansão das universidades públicas; (4) lei de remessa de lucros, que limitava às empresas multinacionais o
contingente de lucro acumulado sobre a exploração da força de trabalho e das
riquezas nacionais que poderia ser remetido as suas matrizes no exterior,
obrigando-as a reinvesti-lo na economia interna. Vale lembrar também que foram
anunciadas a nacionalização de importantes refinarias estrangeiras de petróleo.
Cabe-nos aqui entender, a partir da
metodologia do materialismo histórico-dialético, a crucial distinção entre forma e conteúdo do nosso objeto, precisamente das reformas de base. Adianto desde já que isso será importantíssimo
para realizarmos nosso exercício de política comparada, uma vez que o termo
“reformas de base” foi um nome historicamente empregado naquele contexto para
caracterizar um conjunto de políticas públicas que permanentemente estão em
debate não apenas no Brasil, mas em todos os países que tiveram sua trajetória
nacional no século XX marcada pelo dilema da emancipação nacional versus associação subordinada ao capital
imperialista (e nos casos africanos e asiáticos, colonial). Por conteúdo do nosso objeto, entendo o
processo de reformas estruturais que
pretendem promover ações socializantes, também chamadas de democratizantes, que
possibilitem um maior acesso das massas de trabalhadores explorados pelo
capital aos frutos da riqueza e do poder social e consequentemente forjem as
bases de uma sociedade capitalista “humanizada” diferente daquela que tais
países herdaram do processo colonizador. São chamadas de estruturais justamente
por seu caráter permanente e livre das oscilações democráticas entre governos
de situação e oposição. As reformas socializantes eram então vistas por muitos
setores diferentes da sociedade (que iam de parte das classes médias ao
operariado e campesinato, do centro à extrema esquerda) como uma etapa
necessária no disputado processo de desenvolvimento nacional. Como disse o
sociólogo Florestan Fernandes - um dos nomes mais importantes das ciências
sociais no Brasil -, “a democracia é a condição da revolução burguesa, mas é
também o freio dos interesses egoístas da burguesia” [1]. Assim, era a visão de trabalhistas e comunistas. Já por forma do nosso objeto, entendo as
diferentes “roupas” que ele utiliza em diferentes conjunturas políticas e
históricas. Entendo seus limites em cada momento, os nomes a ele atribuídos e
por fim, o papel estratégico que ele desempenha nos fins políticos de cada
classe em disputa. Em todos esses países, que um dia foram chamados de Terceiro
Mundo, nosso objeto “vestiu-se” de formas
diferenciadas tendo assumido no Brasil o nome de tarefas nacional-democráticas, ou seja, tarefas que o
desenvolvimento nacional deveria enfrentar para democratizar a sociedade e “emancipar
política e economicamente a Nação”. As reformas
de base, projeto conjunto do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) de Jango e
sindicatos ligados ao Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) e as Ligas
Camponesas, estes dois últimos movimentos sob hegemonia do Partido Comunista
Brasileiro (PCB), era precisamente encarada por esses setores como uma dessas tarefas nacional-democráticas.
Entretanto, não era apenas essas reformas que
tiravam o sono das oposições ao governo Jango, mas era o pacto populista – também conhecido como populismo - iniciado por Getúlio
Vargas, uma vez que esse como fenômeno político era entendido como um modelo de
desenvolvimento que era o responsável, segundo a oposição, pelo crescimento do
poder político de sindicatos, de trabalhadores organizados e do movimento
comunista dentro do Brasil. Acusavam o Executivo de promover após a reabertura
democrática e o autoritário governo de Dutra uma “República Sindicalista”,
devido ao atendimento do Ministério do Trabalho às reivindicações favoráveis
aos trabalhadores grevistas nas disputas capital-trabalho que aumentavam em
número e intensidade. Particularmente, a política externa de Jango também gerou
grande polêmica na oposição. Durante seu governo, Jango decidiu reatar relações
diplomáticas com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e com a China
Popular (de Mao Tsé-Tung). Não por acaso, a primeira tentativa de golpe ocorreu
justamente em ocasião de visita diplomática de Jango a China Popular para
firmar acordos de cooperação econômica. Além disso, o populismo de seu antecessor, Jânio Quadros, fez do Brasil um dos
primeiros países latino-americanos a reconhecer a legitimidade da Revolução
Cubana de 1959, o novo governo independente, que chegou a condecorar em visita
oficial o então ministro da economia cubana, o ex-guerrilheiro comunista
Ernesto “Che” Guevara. Também a concessão de aumento de 100% no salário mínimo
de trabalhadores urbanos e a proposta de inclusão dos trabalhadores rurais às
leis trabalhistas da CLT (direito que só foi estendido em 1988!) eram vistos
como fruto de uma suposta intervenção dos comunistas no governo federal. Sobre
este ponto cabem três reflexões importantes: (1) sobre o fenômeno do populismo como orientador da conduta de
ação do Estado e de alguns partidos no Brasil; (2) sobre a política externa
brasileira que amadurecia em Jango; (3) sobre as relações entre comunistas e
trabalhistas que precisam ser mais bem delimitadas.
Sobre o primeiro ponto, gostaria de chamar
atenção ao fato de que uma corrente cada vez mais importante da historiografia
brasileira busca explicar o fenômeno político do populismo (1930-1964) pelo conceito gramsciano de crise de hegemonia [2]. Empiricamente, o processo de industrialização da economia
brasileira que começara nas últimas duas décadas da República Velha ganhara
impulso somente com o governo Vargas. Getúlio promoveu um processo de
industrialização sob direção estatal, baseado na política de substituição de
importações, de criação de um mercado interno e de amortização dos conflitos
entre aristocracia rural e burguesia industrial, e entre burguesia industrial e
operariado. O conceito de transformismo de
Antônio Gramsci também é perfeitamente aplicável ao processo de desenvolvimento
brasileiro, porque no Brasil a Revolução Burguesa e o advento da Modernidade
não se deram por uma ruptura violenta com a antiga ordem, ou seja, por uma
burguesia urbana que teria sido capaz de tomar as rédeas do Estado pra si e
aniquilar a fração de classe (também burguesa) dos latifundiários. Mas, ao
contrário, o que ocorreu no país foi uma lenta e gradual transformação do capital rural em capital industrial, das famílias
dos barões do café em barões das fábricas, da transformação da hegemonia dos latifúndios em hegemonia da produção
industrial, fenômeno que ficou conhecido na Europa como via prussiana para a modernização.
O que ninguém contava era com os resultados
sociais do processo de modernização do Brasil. Até antes de Vargas, não
contavam com o crescimento colossal do proletariado, a populosa classe social
daqueles que sobrevivem única e exclusivamente da venda de sua força de
trabalho de maneira assalariada livre. Os conflitos viscerais que a exploração
do trabalho (inclusive infantil) produzia nas fábricas gerava na sociedade a
alternativa viável de um movimento pelos direitos dos trabalhadores. Tão pouco
contava com a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia que instaurou o primeiro
Estado Proletário do mundo e, mais que isso, a alternativa socialista que guiou
o movimento dos trabalhadores durante todo o século. O populismo não é uma ideologia de esquerda e desde Vargas os “populistas” vacilaram entre a alternativa da
conciliação de classes como no governo Jango e o autoritarismo de classe, ou a
repressão total de todos os setores do movimento dos trabalhadores os quais não
pudessem controlar para alcançar seus objetivos; haja visto exemplarmente a
violenta perseguição do Estado Novo e do governo Dutra ao PCB, tendo inclusive
cassado em 1948 os mandatos de toda a bancada do partido e posto ele novamente
na ilegalidade. Os objetivos do populismo
não eram se não, os de desenvolver a economia capitalista no Brasil
consolidando uma sociedade burguesa industrial “moderna” o suficiente para
inserir-se pouco a pouco como economia “autônoma” no mercado mundial de
capitais. Essa observação será importante para nós. A crise de hegemonia para entender esse processo advém: (1) da
impossibilidade lógica de promover um desenvolvimento industrial acelerado baseado
na dinâmica do capital que promova em igual medida e igual tempo o
desenvolvimento material das condições de vida daqueles que vendem sua força de
trabalho. Em outras palavras, por um fator
econômico; (2) das condições favoráveis à luta dos trabalhadores, condições
essas consequentes da existência de uma alternativa histórica e então concreta
à sociedade capitalista, a alternativa socialista, que se desenhava em
experiências concretas de organização fabril e de poder popular. Em outras
palavras, um fator político. Portanto,
consistia em uma crise de hegemonia da
burguesia em conduzir seu processo revolucionário.
Sobre o segundo ponto – precisamente, o da
política externa de Jango – é essencial entendermos o contexto em que se dava a
Guerra Fria, que teve implicações diretas e indiretas no golpe de 1964. Não
apenas o Brasil, como todos os países latino-americanos até a Revolução Cubana,
era considerado zona de influência política e econômica “natural” do
imperialismo dos EUA (nas palavras de Monroe). Antes de falar propriamente
sobre a política externa de Jango, quero deixar delimitado o que entendo por imperialismo. Este não é um fenômeno
estritamente geopolítico e a compreensão da totalidade de seu movimento devemos
a contribuição intelectual singular de Lênin [3]. Por imperialismo,
entendo o estágio avançado de uma sociedade baseada na lógica do capital, no
qual sua economia já atingiu intenso grau de monopolização e de fusão entre
capital financeiro e capital produtivo, de maneira que já não se pode mais
empiricamente enxergar os limites nem de um nem de outro. As consequências de
uma economia monopolizada de tal tipo é precisamente a de expandir-se
territorialmente no domínio das forças produtivas e das matérias-primas do
mercado mundial, no mais alto grau da contradição entre a socialização da
produção e a privatização da riqueza, de instrumentalização do Estado burguês e
do uso sistemático do belicismo. O domínio geopolítico mundial e o militarismo
são, em última instância, suas consequências sócio-políticas.
A política externa de Jango era o esboço
brasileiro de um movimento internacional de grandes proporções que atingiu os
países do então “Terceiro Mundo”, o da política
externa do não alinhamento. Sobretudo nos casos africanos e asiáticos, os
países ao promoverem entre os anos 1950 e 1970 revoluções de libertação
nacional do domínio colonial enfrentavam um dilema do qual ninguém podia
escapar: o de escolher entre a associação a um dos lados em disputa na Guerra
Fria. Como muitos processos de independência foram liderados por frentes de
libertação nacional nas quais os partidos comunistas tinham grande peso na luta
contra o domínio colonial do imperialismo, em igual número de casos os novos
governos independentes escolhiam associarem-se a URSS (como Angola e
Moçambique) ou a China (como o Vietnã). Entretanto, em tantos outros casos, os
novos governos independentes decidiam por uma terceira via, ou seja, a de não alinhamento com nenhum dos dois
polos, ampliando o horizonte de possibilidades para o futuro nacional (como é o
caso mais emblemático do Irã pós-revolução de 1979). Esse era precisamente o
objetivo de Jango durante seu governo. Ao optar por reabrir relações
diplomáticas com a URSS - abertas com Vargas devido à entrada do Brasil na
Segunda Guerra e fechadas com Dutra em sua política anticomunista - e visitar a
China Popular, Jango queria justamente abrir o horizonte de opções de
negociação para além da “antessala” de Washington, a Organização dos Estados
Americanos (OEA). Queria frisar esse ponto sobre a política externa de Jango,
porque ele é um dos fundamentos do discurso anticomunista que serviu às forças
que aplicaram o golpe.
Já para o terceiro ponto, o de entendermos a
conduta dos comunistas na política nacional, teremos que remetermo-nos em
primeira instância a seu principal polo de organização a época: o PCB, partido que
fora fundado em 1922 como herdeiro da Revolução Russa de 1917 e associado a III
Internacional Comunista (“Komintern”), hegemônico na esquerda, que havia até
então experimentado um único período de legalidade entre 1946 e 1947. Em
segunda instância a um documento publicado no jornal Voz Operária que conduziu a intervenção do partido no momento
pré-golpe, conhecido como Declaração de
Março de 1958 [4]. Entretanto,
vale aqui mais uma nota, a de que iremos didaticamente tratar da conduta do PCB
a partir dos argumentos do ideário oposicionista que sustentou o golpe, a
saber, o do anticomunismo como
ideologia política, ou da falácia de que os comunistas iriam implantar um
“regime soviético” no Brasil.
Para muitos hoje, o PCB pagou um duro preço
na história pelos erros cometidos em sua relação com o pacto populista, mas parece-me demasiado injusto atribuir esse erro
só a ele. Afinal, a Declaração de Março
de 1958 era parte de uma corrente de opinião maior do movimento comunista
internacional que acreditava que países em “situação colonial” ou “semicolonial”
(entre os quais o Brasil) deveriam ter como prioridade a luta pela libertação
nacional do imperialismo e não a luta imediata para a revolução socialista,
posição que se intensificou ainda mais após a vitória da URSS sobre a Alemanha
de Hitler que passou então a caracterizar o caminho para a revolução socialista
não apenas de forma democrática, como também de forma pacífica [5]. Depois de manter-se em oposição ao
Estado Novo e ao governo Dutra, o PCB apoia de forma crítica o governo eleito
de Vargas contra a oposição à direita que já dava claros sinais de “golpismo”
com a União Democrática Nacional (UDN), mas é só mesmo a partir de 1958 que o
PCB aposta na “frente única de luta por um governo nacional e democrático”,
que, formada por uma aliança de classes entre o proletariado e a burguesia
nacional - que supostamente teria interesses contrários ao do capital
internacional em atividade no país -, pudesse emancipar o Brasil do domínio
político e econômico do imperialismo estadunidense pela “via pacífica da
revolução”. Ou seja, o PCB adotou uma tática que ficou conhecida como etapismo, ou a revolução por etapas, na
qual seria primeiramente necessária uma etapa de desenvolvimento nacional de
uma sociedade capitalista avançada para que surgissem as condições de
existência de uma classe proletária que tivesse condição de tomar consciência
de sua missão como sujeito histórico de uma etapa sucessora, a etapa da revolução
socialista. Para a primeira etapa, seria necessário lutar pelo avanço de uma
democracia popular (ou seja, não meramente formal) que pudesse ser ao mesmo
tempo propulsora do desenvolvimento e freio dos interesses “egoístas” da
burguesia. Para se ter uma noção de quão geral era essa corrente de opinião na
esquerda brasileira, mesmo as organizações que apostaram na luta armada para
derrubar a ditadura, organizações estas que se formaram a partir de militantes
e quadros saídos do PCB, em sua maioria, no momento pós-golpe por discordarem
da tática do partido de “frente ampla contra a ditadura”, não o fizeram por
defender a necessidade imediata de uma revolução socialista no Brasil, se não
pela questão da libertação nacional,
do etapismo, e da derrubada violenta
da ditadura para conformação de um governo democrático com ampla participação
popular.
Vale dizer, portanto, que o argumento de que
havia um “perigo comunista” imanente no Brasil é falso, pois, diferentemente do
que fora amplamente pregado por setores oposicionistas, a tática do movimento
comunista e do PCB no Brasil não era, se não, a da realização da etapa nacional-democrática da revolução, na
qual aquelas tarefas nacional-democráticas
que nos referimos no início dessa exposição tinham um peso enorme para o
sucesso dessa política. E o fato empiricamente dado é que em 1964 as tarefas nacional-democráticas em questão
eram precisamente as reformas de base.
Por isso que o projeto das reformas de
base não pode ser atribuído exclusivamente às canetas do gabinete de Jango,
se não a uma demanda histórica emanada da classe operária e camponesa, dos seus
sindicatos e conselhos de trabalhadores, discutida e fundamentada por um
partido comunista de ampla representação nacional e legitimada por uma ampla
maioria popular segundo pesquisas históricas mais recentes. O objetivo da
classe trabalhadora organizada em prol de seus interesses era precisamente o de
estabelecer reformas que, como disse Florestan [6], democratizassem a renda, o prestígio social e o poder.
Entretanto, quando afirmo que o argumento anticomunista no Brasil não era
plausível, não afirmo que ele deve ser descartado; ao contrário, o anticomunismo como fenômeno político
orientou ideologicamente os setores da sociedade civil que sustentaram o golpe
e, portanto teve importância significativa na realidade. Mas o que é o anticomunismo como fenômeno político?
Quais foram suas proporções? De pronto adianto que por tratar-se de um fenômeno
internacional ele também deve ser caracterizado como de grande complexidade.
Por esse motivo, farei um esforço em limita-lo à discussão interna do Brasil [7].
Parece-me que o anticomunismo, em especial quando toma grandes proporções em
sociedades democráticas, expressa a “ideologia da burguesia em crise”, ou seja,
uma postura de radical oposição de caráter reacionário às forças progressistas
num momento em que os partidos comunistas mostram-se como uma alternativa real de
poder aos trabalhadores. Nesse ponto, gostaria de dizer que o anticomunismo expressou-se na realidade
brasileira como um ponto nodal, ou seja, como um polo da aliança das diferentes
frações de classe da burguesia e da pequena-burguesia que conformaram uma
oposição sólida e real a um inimigo comum, que não necessariamente era
comunista, mas que era considerado diretamente responsável pelo crescimento
desses. Em outras palavras, um motivo de unificação da classe burguesa pela
superação das diferenças imediatas entre as diferentes frações em disputa em
prol de uma aliança contra um inimigo estratégico comum. Sua expressão política
mais elevada deu-se exatamente na Marcha
com Deus, pela família e pela liberdade contra o comunismo de 22 de março de
1964 em São Paulo. Em contrapartida, do outro lado do nosso quadro estava a necessidade
imediata da solução de problemas sociais que abalavam as famílias operárias e
camponesas - tais como a fome, a exploração e a miséria -, ou seja, a pressão
“pré-política” (mais corretamente expressa no termo “infraestrutural”) que a
carência de condições materiais de vida exercia sobre a classe proletária, foi
precisamente o ponto nodal oposto ao anticomunismo;
foi o ponto de unificação das frações de classe do proletariado com setores
progressistas da classe média. A frente
única é por fim, a expressão desta unidade. Para concluir, uma prova
concreta de que o golpe pressupôs uma aliança dentro da própria burguesia é o
fato de que durante o regime militar sempre existiu uma oposição entre “moderados”
e “linha dura” dentro do próprio ARENA e dos altos círculos militares, tendo
feito com que num momento posterior algumas organizações civis que aderiram ao
golpe voltassem atrás, como é o caso das principais correntes da Igreja
Católica.
·
O
que sucedeu o golpe?
Para que não nos percamos em discussões
frutíferas e infindáveis sobre aspectos que não serão importantes aqui,
continuarei na linha de raciocínio que estabelecemos na introdução, a saber, da
questão das reformas de base.
Imediatamente após o golpe, a tarefa do novo governo passou a ser a de sabotar
as reformas estruturais que a esquerda havia proposto para o país. Na verdade,
a minha tese consiste no fato de que ele iniciou contrarreformas, ou seja, nos moldes de um governo bonapartista, realizou políticas e
erigiu instituições e regras de caráter precisamente contrário as que as tarefas nacional-democráticas da
esquerda propunham. Falaremos com atenção sobre esse aspecto, mas primeiro
gostaria de deixar claro qual o caráter que a intervenção militar de 1964
assume para a História política brasileira.
Durante muitas gerações, a historiografia
brasileira confundiu-se com o problema da necessidade de se tomar uma
perspectiva de totalidade da análise
no caso específico da classificação do período autoritário brasileiro, a saber,
a de que o termo “regime militar” ou “ditadura militar” parecia demasiadamente
simples e incompleto a ponto de não dar conta da realidade das estruturas e
grupos de sustentação do período autoritário. A justificativa era tão simples
quanto o problema e poderia ser em poucas palavras resumida em: “pelo termo
ditadura militar entende-se que os militares conduziram o processo autoritário
ou de maneira exclusiva ou como lideranças políticas do processo, fatos que não
são, segundo as fontes historiográficas mais recentes, empiricamente
constatáveis”. A perspectiva da totalidade
faz com que, em contrapartida, tomemos na análise de conjuntura daquele período
histórico o ponto de vista dos elementos de sustentação do regime. Mas quais
foram esses elementos? Podemos enumerá-los de maneira rápida em: (1) a
influência política e geoestratégica do imperialismo dos EUA; (2) a frente
anticomunista de união entre as classes burguesa e pequeno-burguesa; e (3) o
poder econômico que financiava as ações do Estado autocrático; (4) a
intelectualidade do regime representada pela dupla IPES-IBADE [8]. Desse modo é corrente hoje, e a
meu ver muito mais preciso, o termo ditadura
civil-militar ou ditadura
empresarial-militar. Isso suscita a conclusão de René Dreifuss [9] de que o golpe de 1964 foi na
verdade um golpe de classe.
A tese do golpe de 1964 como um golpe de classe significa que ele marcou
o período de tomada do poder do Estado pela aliança burguesa, no qual
começou-se a partir de então a erigir uma estrutura político-estatal que fosse
mais “segura” e “estável” para a tarefa do desenvolvimento nacional. Com essa
estrutura político-estatal, chamada por Florestan de Estado autocrático-burguês, inicia-se a referida série de contrarreformas que visavam garantir a
seguridade do mercado brasileiro para o capital tanto nacional quanto
internacional. Interessante também é que por “golpe” não necessariamente
deve-se entender uma tomada de poder por fora da legalidade jurídico-política,
mas precisamente o contrário, de que existem em muitas democracias burguesas
artifícios de direito que possibilitam a interrupção de um processo democrático
por via constitucional. Esse era precisamente o caso brasileiro. Chamo a
atenção porque há entre a extrema direita o argumento de que o golpe de 1964
foi constitucional, uma vez que o impedimento de Jango foi aprovado pelo
Congresso. O que os partidários de tal argumento não podiam contar era que o
dispositivo jurídico-político do golpe, ao invés de legitimar uma ação
“legalista”, ratifica ainda mais a definição de golpe civil-militar, ou seja, de que a alta cúpula das forças
armadas ao invés de dirigir exclusivamente o aparelho estatal durante o regime
dividiu essa direção com importantes setores da sociedade civil burguesa, do
empresariado e de seus setores politicamente organizados; tendo por isso
cumprido a tarefa nacional de uma agenda burguesa desenvolvimentista para a
política brasileira elaborada por seus órgãos de intelectualidade.
Na esfera superestrutural da ideologia havia
um valor que era tido como crucial para a nova elite dominante do país, o valor
da ordem. A chamada garantia da ordem que rogava-se às forças armadas
pelo Estado e pela imprensa apresentava-se como um princípio fundamental da “segurança
nacional” e da estabilidade do mercado brasileiro de capitais. Interessa-nos
agora então, a delimitação do que entendemos por ordem como conceito sociológico. Esta como este tipo de conceito
será entendida aqui como o dispositivo político do fenômeno de reprodução de uma sociabilidade, que,
numa perspectiva materialista do caso brasileiro, é precisamente o da reprodução das relações sociais de produção capitalistas. Isso significa
que uma dada sociedade apresenta dois tipos de movimentos em sua dinâmica, a
saber, o da produção e o da reprodução de determinadas formas de
sociabilidade. Grosso modo, significa perceber a sociedade como possuidora de regularidades, em outras palavras, de
ações sociais que se produzem e se repetem ordinariamente em todas as esferas
da vida social. A lógica que faz com que uma mesma ação repita-se
cotidianamente chama-se dominação e é
ela que importa sociologicamente. Essa lógica apresenta-se nas ações que os
homens empregam na produção material
da sociedade (grosso modo na economia) e na reprodução
das relações culturais e políticas que estabelecem entre eles. Entretanto, é
crucial apontar que a ordem no caso
que estudamos não é apenas um conceito sociológico, mas, sobretudo, um conceito
axiológico, ou seja, valorativo. Por interessar-nos aqui uma análise política
de conjuntura, teremos de empregar o conceito de ordem por sua materialidade na vida política da realidade histórica
que estudamos. Dessa forma, em política a ordem
apresenta-se strito sensu ora
como reivindicação, ora como denúncia de sua ausência (desordem) e é por isso capaz de orientar a conduta dos homens de
ação. A ordem como bandeira política
é essencialmente conservadora, porque está calcada na manutenção e na defesa de
um tipo de dominação que está dado, em última instância, da tradição da continuidade
das formas dadas de reprodução da sociabilidade
burguesa; especificamente para nosso objeto, do status quo radicalizado pelo golpe civil-militar.
A garantia da ordem, ou seja, da nova ordem
estabelecida na dinâmica do conflito capital-trabalho, foi a responsável
pela repressão violenta a todos os setores opositores que visavam sabotar as
estruturas do Estado autocrático. Foi, sobretudo, o instrumento necessário para
liquidar com a organização do movimento operário já em 1964. A ditadura
brasileira manteve uma “obsessão legalista” que, entre outras coisas, não
promoveu o fechamento dos sindicatos. Ao contrário, sua tática muito mais
inteligente visou atacar o movimento dos trabalhadores organizados naquilo que
lhes dava vitalidade: o “chão-de-fábrica” e a “central sindical”. Nas palavras
de Marco Aurélio Santana [10], o
aparelho da repressão “cortou o pé e a cabeça do movimento operário”, fechando
“conselhos de fábrica” e de local de trabalho, organizando “listas negras” de
trabalhadores junto ao empresariado e fechando a central sindical do CGT.
Entretanto, o “corpo” não escapou ileso, dado as inúmeras intervenções do
Ministério do Trabalho e da Polícia Militar e Civil nos sindicatos, em suas
eleições e atividades.
A estratégia da ordem visava também com grande ênfase aniquilar o Partido Comunista Brasileiro. Esse foi um objetivo
particular da intelectualidade do
regime autocrático. O argumento de que a ditadura apenas repreendeu de maneira
violenta as organizações políticas que se encaminharam para a tática da luta
armada não procede. O PCB, por exemplo, mesmo não defendendo a luta armada e tendo
apostado na consolidação de uma frente
ampla entre o movimento operário e camponês e setores da oposição formal ao
regime (do Movimento Democrático Brasileiro – MDB) para democraticamente
derrubar a ditadura, foi em números absolutos até mais atacado que as
organizações guerrilheiras. Vejamos alguns números da “ordem”: a anistia a
ex-dirigentes do PCB como a Luiz Carlos Prestes e Gregório Bezerra só foi
concedida mais de um ano e meio depois da aprovação da Lei de Anistia em 1979; embora
as primeiras eleições livres tenham ocorrido já em 1982 com a presença de dois
recém-fundados e legalizados partidos de forte oposição ao regime ditatorial –
o Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula e o Partido Democrático Trabalhista
(PDT) de Lionel Brizola -, o PCB só conquistou sua legalidade em 1985 tendo
ficado alijado daquele pleito eleitoral; por fim, o PCB teve mais de 1.300
militantes presos e processados, mais de 5.000 exilados e, apenas durante a Operação Radar (1974-1976) do governo de
Ernesto Geisel, 40 dirigentes assassinados, dos quais 10 destes representavam quase
1/3 de seu Comitê Central [11].
Mesmo após a Lei de Anistia, a repressão ao PCB continuou, tendo sido
emblemático a tomada de assalto que a polícia federal fez ao VII Congresso do
partido em São Paulo já no ano de 1982, tendo prendido todos os militantes sob
acusação de infringir a Lei de Segurança Nacional.
Voltemos agora à questão levantada sobre as contrarreformas. Não é nem de longe
falso o argumento de que a ditadura civil-militar proporcionou um boom na
industrialização do país, na conformação de uma infraestrutura econômica e no
amadurecimento da economia brasileira de matriz capitalista; bem como a
expansão destas formas de relações sociais de produção para toda a sociedade, ou,
em outras palavras, o chamado desenvolvimento nacional. Não é nossa intenção
falar de seus números aqui, mas sim sobre seu caráter e modelo de desenvolvimento,
mais precisamente, sobre as consequências do processo de industrialização
acelerada para a vida das famílias de trabalhadores brasileiros.
Dessa forma, é impossível entender os
recordes obtidos pela acumulação de capitais, sobretudo durante o milagre econômico, sem levar em conta a
política de arrocho salarial que
dirigiu hegemonicamente a política salarial do Brasil até a vitória da terceira
greve do ABC em 1981. O que era o arrocho
salarial? Ele era um mecanismo do Ministério da Fazenda para o controle da
inflação mediante o congelamento dos salários e pensões dos trabalhadores, que
resulta da diminuição do consumo interno pela diminuição do poder de compra. O
Estado autocrático, para não incorrer no “erro” do populismo de deixar que a decisão das disputas salariais saísse das
mesas de negociação entre sindicatos e empresários, trouxe para “dentro de si”
o mecanismo do controle salarial. A partir de 1964, os sindicatos tutelados
deveriam negociar seus aumentos salariais com o Ministério do Trabalho e, por
determinação da política econômica, os aumentos destes não poderiam ser
superiores ao índice inflacionário oficial do governo (INPC). Porém o INPC,
sobretudo a partir de 1973 não correspondia nem de perto a realidade da
inflação dos preços que chegavam ao consumidor final. Sem o crescimento da
renda dos trabalhadores assalariados e com a explosão demográfica do país
sobretudo nas grandes cidades, a política econômica da ditadura conseguiu em 20
anos conformar uma gigantesca classe de proletários, seguida por um gigantesco exército industrial de reserva.
Conseguiu proletarizar uma parcela
significativa da classe média reduzindo a quantidade relativa de profissionais
liberais no país; conseguiu tornar ainda mais dependentes do trabalho
assalariado a classe proletária, através do processo de expropriação das
pequenas propriedades privadas familiares, sobretudo no campo com a Revolução Verde; conseguiu conformar um
amplo segmento de trabalhadores em situação de desemprego, subemprego,
atividades temporárias e emigrantes, que pressionaram tendencialmente para
baixo os salários no mercado de trabalho. Agravou com isso a fome e a miséria
no país que explodiram principalmente entre 1975 e 1985.
A contradição entre arrocho salarial e índices de
produtividade cada vez maiores, significou na realidade o mais intenso
processo de transferência de renda dos trabalhadores laborais para os detentores da propriedade privada dos meios de
produção. Em outras palavras, entre 1968 e 1973 o Brasil viveu o maior período
de concentração de renda de sua história [12].
Interessante é averiguar o fato de que isso atingiu a economia doméstica da
grande maioria das famílias de classe média que tinham apoiado o golpe contra
Jango num momento anterior. Essa concentração de renda foi necessária para
consolidar (ou “construir”) o Brasil que temos hoje, pois ela fez parte do
processo de monopolização do capital
brasileiro que a ditadura civil-militar levou a cabo em associação direta e
subordinada ao capital internacional. Chama atenção mais uma vez o argumento de
partidários do regime, “de que os militares foram convocados pela população
para cumprir uma missão nacional derrubando Jango e livrando o país da ameaça
comunista”. Mas, foi propriamente durante o período autoritário que o capital
brasileiro mais tinha se internacionalizado até os anos 1990, fundindo-se com o
capital internacional. Ou seja, foi sobretudo com as dívidas referentes aos
acordos de empréstimos financeiros entre Brasil-EUA/FMI contraídos sob o regime
civil-militar, e com os incentivos fiscais às indústrias multinacionais no
país, que uma parcela amplamente significativa da riqueza nacional produzida
pelo trabalho laboral foi apropriada
por acionistas e empreendedores do mercado financeiro internacional. Soa cômico
que talvez a proposta mais nacionalista fosse justamente a de Jango, que
defendia a autodeterminação nacional, a política externa do não alinhamento e a independência do
capital brasileiro frente ao imperialismo.
Sociologicamente falando, teria sido improvável
um processo de expropriação ocorrer em tão alto grau e em tão pouco tempo sem
manifestações viscerais dos trabalhadores expropriados contra sua exploração,
ou seja, sem o fator econômico a que
nos referimos na seção anterior, a saber, da pressão material que as condições
sociais de vida exercem sobre a formação das consciências políticas. Como então
explicar o relativo baixo número de greves que ocorreram entre 1968 e 1976? Parece-me
plausível que as manifestações de insatisfação contra as condições de vida e
contra o regime tenham diminuído justamente no período de avanço da repressão
violenta do Estado. Isso quer dizer que, ao contrário do argumento de que “a
repressão política como elemento de análise deve ser dissociada da avaliação do
governo militar”, sob a perspectiva metodológica da totalidade, que torna impossível fazermos tal delimitação da
realidade histórica, a repressão política
era um elemento chave da política econômica. Isto, pois, se não tivesse
havido repressão politica ao movimento sindical e perseguições a militantes que
organizavam os trabalhadores para lutarem por suas demandas históricas, teria
sido improvável a persistência do arrocho
salarial.
Para concluir, quais foram então os
resultados dessas contrarreformas? Precisamente
o resultado oposto às intenções das tarefas
nacional-democráticas. As contrarreformas
operadas pelo Estado autocrático burguês entre 1964 e 1985 promoveram
justamente o estrangulamento da tentativa de democratizar o poder e de
socializar parte considerável das riquezas nacionais, garantindo as condições
estruturais de funcionamento de mercado para maior participação da classe
trabalhadora no montante do produto da produção econômica nacional. O Brasil
que herdamos no início do novo século fora justamente o Brasil que o período
autoritário construiu: um dos cinco países mais desiguais em renda do mundo
(diferença entre os 1% mais ricos e os 10% mais pobres); um país em que os 5%
mais ricos detinham em fortuna o equivalente a quase 65% do PIB nacional; um
dos três países em situação de paz com maior índice de homicídios do mundo (dos
quais se estima que cerca de 50% eram cometidos pela Polícia Militar); um país
da institucionalização da prática da tortura (contrária aos acordos
internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário); e um país
de uma democracia tutelada. Deixo a livre interpretação da imaginação histórica
que o pensamento nos pode proporcionar para aqueles que gostariam de imaginar o
que poderia ter acontecido se o Brasil não tivesse deixado às reformas de base para trás em 1º de
abril de 1964.
·
Tarefas
e dilemas da sociedade democrática que herdamos:
Não poderia ter escapado à tradição política
brasileira que a passagem de nosso Estado autocrático para um Estado
Democrático de Direito tivesse ocorrido novamente pela via prussiana da modernização, ou seja, pela via do transformismo que discutimos já anteriormente.
Velhos defensores do golpe e da ditadura transformam-se com passar dos anos em
supostos defensores da democracia e da abertura política do país. E, muito
embora, a mobilização popular e social que reanimou intensamente o movimento
dos trabalhadores do campo e da cidade nos anos 1980 tenha desempenhado um
papel fundamental na conformação da opinião pública favorável às eleições
diretas, à nova constituição e a volta à democracia, todo seu acúmulo foi
derrotado nas estratégias das elites nacionais em consolidar um processo de
reabertura “lento, gradual e seguro”. Em outras palavras, a alternativa de
derrubada violenta, porém democrática, da ditadura que se conformava nas ruas -
a qual tinha a hegemonia do chamado campo
democrático-popular, do qual o Partido dos Trabalhadores (PT), a Central
Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra
(MST) eram algumas de suas lideranças mais latentes – fracassou na derrota das Diretas Já, na fragmentação das
esquerdas na Assembleia Constituinte e na derrota da chapa Brasil Popular (PT, PDT, PCdoB, PSB) nas eleições presidenciais de
1989. Diferente do caso argentino, no Brasil o regime ditatorial não foi
derrubado, mas foi transformado em democrático, mantendo certos eixos importantes
de conexões entre as duas formas de organização estatal (o que chamaremos de
nossa herança autoritária). As
conexões (ou resquícios) que ligam duas formas de sociabilidade política
temporalmente sequenciadas em uma mesma sociedade nacional não é algo novo, mas
sim algo próprio de transições feitas sem ruptura.
Um desses elementos de continuidade foi o da
criação de um mecanismo de funcionamento político no Brasil com a Carta de 1988
chamado de presidencialismo de coalizão.
O que seria o presidencialismo de
coalizão? Este é um fenômeno consequente de artifícios legais em alguns Estados
democráticos, nos quais, grosso modo, visa tornar o mais difícil possível a
conformação de uma maioria
parlamentar. Isso “empurra” tendencialmente os governos eleitos à busca pela
conformação de coalizões com outros
partidos e setores que não necessariamente concordam com o projeto de governo
da situação, o que significa que para
conformar uma maioria parlamentar capaz
de aprovar os projetos de governo que foram democraticamente aprovados por
maioria popular em eleições livres, a situação
tenha que buscar alianças inclusive com setores ideologicamente afastados de
suas convicções. Em poucas palavras, obriga os governos eleitos a uma
negociação incessante que em última instância modifica o projeto eleito
democraticamente em igual medida ao tamanho da coalizão. O presidencialismo de coalizão cria um artifício burocrático para
impedir quaisquer “radicalizações” na política de governo, burocratiza as
decisões, é o responsável direto pelo crescimento desnecessário da máquina
estatal (que vem a ser loteada em suas negociações) e desfavorece o trabalho da
oposição. O presidencialismo de coalizão é, portanto, um dos elementos que faz
com que a maior parte dos partidos fisiológicos baixem suas bandeiras e valores
para centrarem-se na negociação e na disputa pela maior porção possível do
aparelho decisório [13]. O fato de que
no caso brasileiro a transição democrática foi desenhada por aqueles que
“efetivamente” realizaram-na, fez com que o presidencialismo
de coalizão caísse como uma luva para os planos de uma transição “segura”.
A noção sobre o significado do fenômeno do presidencialismo de coalizão e de suas
implicações políticas na vida democrática será crucial para entendermos parte
dos fatores que levaram o Partido dos Trabalhadores a adotar a postura presente
no seu primeiro exercício de governo presidencial (2003-2014). Precisamente,
porque, para entendermos a proposta histórica do PT para o país temos que
voltar um passo atrás no eixo argumentativo de todo esse artigo, a saber, o das
tarefas nacional-democráticas. Estas,
que em 1964 assumiam a forma das reformas de base passam a assumir a
partir do início do processo de redemocratização (ainda nos anos 1980) a forma do projeto democrático-popular. E em que consiste este projeto?
Rapidamente poderíamos dizer que o projeto
democrático-popular foi o primeiro grande projeto do PT de conformação de
uma aliança dos trabalhadores do campo e da cidade com os setores médios para
consolidar uma frente forte o suficiente para disputar a hegemonia da Nova
República e da sociedade brasileira, a fim de levar a cabo as mesmas reformas
de cunho socializante e democratizante que pressupunham o cumprimento das tarefas nacional-democráticas de maneira
como já expomos anteriormente. Porém, cabe aqui a crucial distinção entre o projeto democrático-popular e as propostas nacional-democráticas que os comunistas propunham até os anos 1970:
diferente da concepção etapista dos
comunistas do PCB dos anos 1960, o projeto
democrático-popular tinha débil perspectiva socialista e, mesmo não
descartando o fato de que algumas correntes mais a esquerda desse campo
defendessem o “socialismo”, este não o era de modelo soviético ou chinês (os
quais eles eram muito críticos), se não um modelo de “socialismo” que não
promoveria qualquer ruptura nem com a modernidade burguesa, nem com a
propriedade privada dos meios de produção. Em outras palavras, uma proposta de
“capitalismo humanizável” ou “desenvolvimento responsável” fomentada pela
conjuntura dos anos 1990 de derrocada do bloco soviético no Leste europeu e de socialdemocratização de grande parte dos
partidos comunistas em todo o mundo, do qual o PCdoB é o exemplo mais latente
em nosso país.
O abandono do PT atual as suas teses
históricas é um complicado processo que já vinha se consolidando desde 1991,
que amadurece com a Carta aos Brasileiros
de Lula em 2002 e que atinge seu ápice (a meu ver) com a postura do governo
federal frente às manifestações populares em 2013 e os preparativos pra Copa
2014. De todo modo, cabe-nos aqui apenas indicar para efeito discursivo que o
PT transformou-se efetivamente num partido de postura socialdemocrata, num partido de centro.
Minha tese reside embrionariamente no fato de que o presidencialismo de coalizão forçou o PT a tomar a decisão entre:
conformar-se a ordem estabelecida
pela Nova República e abrir o jogo de negociações com as diferentes forças
políticas e frações de classe da burguesia e, através da conquista de espaços
na máquina estatal, promover reformas de cunho socializante sem a perspectiva
com uma ruptura com a sociedade de classes; ou optar pela mobilização das
massas populares e dos aparelhos legítimos de organização dos trabalhadores
para impor, por fora do Congresso Nacional, uma maioria popular capaz de
realizar as reformas independente de
uma provável maioria da oposição parlamentar (como foi a decisão de Chávez em
um dado momento na Venezuela). Optou conscientemente pelo primeiro desde os
primeiros anos de governo Lula. A única diferença latente do caso do governo do
PT para a postura que apresentamos nas frases anteriores, é que neste caso
particular, devido ao peso histórico que o partido exerce em uma importante
fração dos movimentos sociais e do movimento sindical, pela origem comum que
esse mantém com tais movimentos, o PT cooptou
as principais lideranças dos movimentos dos trabalhadores para a entrada na
coalizão da situação, servindo a este
como peso de régua em várias negociações. Para dar um exemplo, mesmo as
reformas de “tentativas democratizantes” que foram empregues nos governos do PT
ocorreram de maneira conciliatória entre as lideranças sindicais e os
interesses de importantes frações de classe da burguesia, dos quais a Reforma Universitária (REUNI), a Reforma da Previdência Social, as
“tentativas” de Reforma Agrária, o Acordo Coletivo Especial e as políticas
de distribuição de renda como Fome Zero e
Bolsa Família são exemplos
importantes.
Os resquícios do projeto democrático-popular propõem sobretudo uma disputa da
direção do desenvolvimento nacional, o qual tem como a formação de um mercado
interno seu principal norte. Daí a proposta de políticas de transferência de
renda, pois estas promoveriam a “integração social”, dariam um poder econômico
estável à grande maioria da população que ela nunca teve desde a ditadura
civil-militar, o que possibilitaria o crescimento da produção industrial e da
economia nacional. Mas, em momento nenhum esse governo aponta para uma “ruptura
com o capitalismo”, ao contrário, e faço questão de enfatizar isso, o resultado final de todas as políticas de
cunho socializantes que operam dentro da própria lógica do capital e que não
possuem caráter estrutural de direitos sociais consolidados é, em última
instância, a do próprio fortalecimento da produção agroindustrial, da
exportação de capitais e do fortalecimento dos monopólios da burguesia. Não
a toa, os maiores partidários do Bolsa
Família são os representantes da associação patronal do capital industrial,
a Confederação Nacional das Indústrias (CNI) [14]. Acontece que no Brasil, parece existir uma fração de classe
de caráter reacionário que não aceita o fato de que hoje é um partido
socialdemocrata de centro com histórico operário quem dirige os negócios da
burguesia brasileira e aprofunda as contradições do capitalismo no país. Esse
fenômeno não é totalmente novo, uma vez que a socialdemocracia sempre foi o
bode-expiatório da história, amplamente criticada tanto pelos que estão a sua
esquerda, quanto pelos que estão a sua direita. Vale lembrar também que o
governo federal cumpre hoje uma agenda imperialista graças ao grau de
monopolização que o capital brasileiro historicamente atingiu. A inserção
subordinada do capital brasileiro ao capital imperialista internacional fez com
que o Estado brasileiro durante o governo do PT mais que nunca expandisse sua
influência nos mercados estrangeiros. Os principais exemplos que podemos
apontar são o da liderança brasileira na ocupação militar imperialista do Haiti
(MINUSTAH), o do fortalecimento do Brasil como liderança nas relações
econômicas e políticas Sul-Sul e o da exportação de capitais de grandes
monopólios brasileiros (sobretudo da construção civil) para a exploração de
riquezas e para produção em países africanos e latino-americanos (inclusive na
Venezuela e em Cuba).
Concluindo, cabe-nos fazer uma reflexão sobre
a suposta atualidade das tarefas
nacional-democráticas, em todas as suas formas. O problema do
desenvolvimento nacional, do qual as tarefas
e reformas eram tidas como um dos
caminhos para esse desenvolvimento, parece ter se esgotado historicamente. Mas
por que afirmamos que a defesa do “avanço do processo democrático” não é mais
plausível para o Brasil? Esse argumento parece inclusive contraditório, pois é
notável do ponto de vista do proletariado que a democracia em que vivemos é
excludente e meramente formal. Como afirmar que o projeto de avançar nas
reformas socializantes está esgotado no Brasil, se a concentração de renda e a
pobreza continuam a possuir números assustadores? Não me esquivarei de
responder tais perguntas em detalhes, mas precisamos retomar ao tema do
desenvolvimento. Responderia como contra argumentação a estas indagações
consistentes que o esgotamento das tarefas
nacional-democráticas advém do próprio estágio de desenvolvimento do
capitalismo no Brasil. Os problemas sociais que assolam o país são fruto
próprio do desenvolvimento do modo de produção capitalista, de sua completa
expansão para todos os setores da vida social. Não há hoje do Oiapoque ao Chuí
um único indivíduo que esteja fora de relações capitalistas de produção, nem há
quaisquer formas pré-capitalistas de organização do trabalho que persistam
competindo com uma expansão das formas capitalistas. A ditadura civil-militar
foi a principal responsável por impulsionar a sociedade brasileira a atingir
sua fase madura de sociabilidade
burguesa; de atingir seu mais alto grau de expansão no domínio territorial da
Nação; de conformar uma classe burguesa poderosa; de erigir grandes monopólios
de sociedade entre capital brasileiro e capital estrangeiro; de consolidar um
aparato jurídico-político completo; e de construir um Estado que cumpre
internacionalmente (ainda que de maneira subordinada) a agenda do imperialismo.
A existência de miséria e “subdesenvolvimento” não é por uma suposta falta de
“capitalismo” ou de desenvolvimento nos rincões do país, mas precisamente pelo
desenvolvimento das contradições próprias
que a lógica de acumulação do capital proporciona.
Afirmar que o capitalismo brasileiro é um
capitalismo maduro ou completo não significa, entretanto,
dizer que ele não tem pra onde “crescer”. Ao contrário, no cenário em que
vivemos de aprofundamento da crise internacional capitalista de 2008 e da
ampliação do pagamento dos “custos sociais” da crise pelo proletariado em vários
países, a reestruturação produtiva e a consolidação de novas taxas de
acumulação de capital são sempre uma alternativa em questão. Em poucas
palavras, a produção cresce (ou retoma seu crescimento em período de crise),
mas a apropriação dos lucros da produção é cada vez maior por uma parcela cada
vez menor da população inserida na cadeia produtiva. Por isso, de nada adianta crescer a economia se esta é
baseada na lógica da apropriação privada do capital; sua consequência será sempre a de aumentar a desigualdade econômica
entre aqueles que vendem sua força de trabalho e aqueles que se apropriam do
produto do trabalho alheio. O Estado não pode romper com essa lógica
enquanto estiver nas mãos daqueles que se beneficiam dela. Um determinado
governo pode então, conforme as condições políticas e históricas de momento,
apenas de maneira limitada, “maquiar” a forma
que o Estado assume, implantando políticas públicas que “suavizem” as
discrepâncias materiais da sociedade, mas isso não altera seu conteúdo; o conteúdo próprio do Estado burguês como garantidor da propriedade privada dos meios de produção,
da livre compra e venda da força de trabalho e da acumulação privada da riqueza
socialmente produzida. Nesse sentido, a conclusão que chegamos aqui é de
que as tarefas nacional-democráticas não
são tarefas em atraso, mas sim tarefas conscientemente deixadas para trás
por aqueles que dirigiram e aqueles que hoje dirigem o desenvolvimento
nacional.
·
Elementos
para uma conclusão:
Que tarefas temos nós então para com a
“naturalidade” de nossa herança
autoritária? De que maneiras esta se desenha no cotidiano da sociedade
brasileira? Essas são perguntas demasiado complexas, das quais quaisquer
conclusões estão muito aquém da minha capacidade elucidativa de discutir aqui resumidamente
com clareza e precisão. Uma exposição tão precisa parece-me precipitada,
porque, em tempos de conjuntura acelerada, sempre é mais provável que a
realidade atropele as previsões daqueles que se põem a analisá-la. Por isso, os
elementos aqui expostos visam acumular para um necessário debate sobre a
conduta que qualquer indivíduo minimamente progressista e consciente das tarefas
civilizatórias de nosso tempo deve ter a cerca da realidade da ampla maioria da
população brasileira.
A conjuntura abriu, através da mudança de sua
correlação de forças que ocorre muitas vezes de maneira inesperada, uma brecha
histórica para o problema da herança
autoritária, a saber, a oportunidade de finalmente conformar uma Comissão
Nacional da Verdade (CNV) que possibilitasse a investigação e a elucidação dos
crimes políticos cometidos pelo Estado brasileiro contra a oposição durante o
regime autoritário. É bom que se diga que a abertura dessa investigação é fruto
de uma imposição internacional ao Estado brasileiro e não de uma imposição por
uma maioria consolidada na política interna. A CNV é fruto de uma sentença
proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA contra o Estado
brasileiro pela incompatibilidade entre os acordos de direitos humanos que o
Brasil era signatário (dos quais o mais importante foi assinado durante o
governo Fernando Henrique Cardoso em 1997) e a omissão da Justiça brasileira
com o julgamento de torturadores e assassinos que estão em situação de
liberdade, o que obrigou o Brasil a estabelecer sistemas de justiça de transição para assumir
definitivamente uma versão “oficial” (ou estatal) da História nacional. É bom
que se diga que o Brasil é, entre todos os países que efetuaram transições de
regimes autoritários para democráticos a partir da segunda metade do século XX,
aquele que mais atrasado estava na implantação de uma justiça de transição. Ou seja, embora a apuração dos crimes seja
quase um consenso na opinião pública há algum tempo, o governo Lula em oito
anos não teve a capacidade de cumprir uma agenda histórica não apenas de seu
partido, mas também de todas as forças democráticas, devido às consequências
administrativas e políticas do rompimento com seu pacto de coalizão. Isso significa que, na minha opinião, foi o fenômeno do presidencialismo de coalizão que levou,
dentre outras coisas, o governo do PT a postergar a abertura da CNV e o debate
sobre a Lei de Anistia, sobretudo durante a gestão de Lula, evidenciando um
contrassenso às aspirações dos setores organizados dos trabalhadores e
movimentos sociais que historicamente apoiaram a coalizão governista
Mas não parou por aí. A discussão iniciou-se
de maneira acalorada a cerca da composição das pastas da CNV, da temática a ser
abordada e da culpabilidade dos crimes cometidos. As direções das forças
armadas, que queriam obter uma metade de cadeiras, foram derrotadas e ficaram
não apenas com uma minoria como não conseguiram aprovar a investigação sobre
militantes de oposição. Com o argumento de que a oposição já foi devidamente
investigada e penalizada, enquanto os executores de torturas e assassinatos a
mando do regime nunca foram formalmente nem investigados, nem penalizados
(embora tenham sido anistiados), as forças políticas do centro e da esquerda
conseguiram grande vitória na composição estrutural da CNV. Entretanto, a
conjuntura, da mesma maneira que abre possibilidades, expõe pela correlação de
forças os limites políticos de determinadas ações. Isso significa que, na
medida em que a abertura da CNV vislumbrou um avanço democrático real para o
país, a correlação de forças favorável ainda ao grande capital em detrimento
das forças mais progressistas impediu que as investigações se estendessem para
a participação efetiva da sociedade civil durante o regime, tendo sido
restringida apenas aos agentes de Estado. Ou seja, a CNV abriu mão logo de
princípio da investigação sobre crimes cometidos por colaboradores civis com a
repressão durante o regime militar. Tivesse sido a conjuntura favorável às
forças de esquerda, a justiça de
transição deveria (como o fez em outros países) investigar a colaboração de
empresários com as “listas negras”, com o financiamento de operações secretas,
de violação de direitos humanos e trabalhistas dentro das fábricas, empresas e fazendas
e de conflitos no campo envolvendo o assassinato de famílias camponesas que
resistiram à expropriação de suas terras por grandes latifundiários e as
recentes denúncias de exploração de trabalho indígena escravo em fazendas de
Minas Gerais nos anos 1970. Mas, obviamente, isso dependeria de uma correlação
de forças favorável o que é histórica e politicamente impossível (acredito que
até o presente momento) dado o caráter da transição brasileira ao regime democrático
provocado “pelo alto” e sem rupturas com a institucionalidade anterior. Outro
exemplo das limitações da conjuntura foi a derrota do projeto de revisão da Lei
de Anistia pelo Superior Tribunal Federal em 2011.
Mas a conjuntura mais uma vez acelerou-se
inesperadamente em 2013, pegando até mesmo os mais otimistas de surpresa. Os
problemas sociais e econômicos que têm sido gerados com o crescimento da
acumulação de capital com a aproximação dos chamados “megaeventos” no Brasil possibilitaram
intensas manifestações populares a partir de junho que ganharam ampla adesão da
opinião pública. Os gastos abusivos com a construção de equipamentos
esportivos, a corrupção, a privatização generalizada (de hospitais, portos,
aeroportos e estádios – com seu ápice no Maracanã), o avanço do processo
jurídico-econômico da precarização das relações de trabalho, sobretudo da
juventude, a inflação especulativa nos centros urbanos que receberão os eventos
(com o Rio de Janeiro como principal exemplo), as reivindicações salariais de
várias categorias, a militarização de bairros populares e a escalada expressiva
da violência policial nas favelas com a política de “pacificação” (de paz dos
cemitérios...), a relação fisiológica entre máfias de empresários e o poder
público e partidos fisiológicos, entre outras coisas, culminou num processo de
avanço da insatisfação e de possibilidades maiores de diálogo com a classe
trabalhadora. As manifestações populares que se iniciaram então, sobretudo
durante suas fases de maior radicalização, empenharam forte crítica aos meios
de comunicação, a bancos privados e ao aparato policial, o que ganhou muita
notoriedade na opinião pública nacional e internacional. Essa crítica
expressou-se ora politicamente por bandeiras e dizeres, ora por ações diretas
violentas das massas contra os referidos acima. O avanço inegável das forças
progressistas a partir das mobilizações de junho fez com que importantes
frações de classe que historicamente apoiaram o golpe militar recuassem o que
foi decisivo para o avanço democrático
das investigações da CNV e da possibilidade real de nova revisão da Lei de
Anistia. Em outras palavras, o exemplar recuo das organizações Globo na defesa da não punição aos
torturadores, que se expressa até agora de forma máxima no editorial do jornal O Globo de agosto de 2013 que realiza
uma autocrítica da empresa reconhecendo que “o apoio editorial ao golpe foi um
erro” [15], é uma resposta clara aos
incômodos gritos de centenas de milhares de pessoas veiculados em toda a imprensa
de que “a verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura... e ainda apoia!”.
O avanço das investigações da CNV fez com que
algumas frações de classe burguesa entoassem a crítica conjunta de boa parte do
alto oficialato das forças armadas de que aquela comissão estaria provocando
uma “crise nos meios militares” [16].
Ora, queria registrar aqui a minha avaliação, que é baseada nos argumentos que
discorremos anteriormente. Avaliando-se o complexo movimento político das
forças em disputa, parece-me que quem causou uma suposta “crise” nos meios
militares não foi a instalação da CNV, mas sim o recuo sistemático que vêm
ocorrendo por parte de importantes frações de classe burguesa que desempenharam
papel fundamental no apoio do regime autoritário, uma vez que uma parte
importante dessa não tem se mostrado disposta a arcar com as possíveis
consequências políticas da defesa de seus antigos aliados militares
“executores” do regime, devido ao peso que elas podem vir a ter em um momento
mais desfavorável da opinião pública em relação aos mesmos. Isso me parece
importante e tem paradeiro histórico em outros momentos de justiça de transição em outros países. Salvas e guardadas as
devidas (e grandes) proporções, cito o caso da “desnazificação” da Alemanha
pelos Aliados pós-1945. Em especial na República Federal Alemã (ocidental),
muitos casos julgados no Tribunal de Nuremberg
chamaram atenção pelo fato de antigos membros do partido nazista (NSDAP)
terem delatado alguns dos operadores de crimes contra os direitos humanos em
campos de concentração e crimes resultantes dos trabalhos do Estado nazista em
geral. Quando os Aliados que ocuparam a parte ocidental da Alemanha decidiram
não efetuar prisões de cidadãos alemães pelo simples fato de esses terem
pertencido ao NSDAP, decidiram também aliviar a penalização de empresários que
compactuaram ou se beneficiaram do regime através da utilização de trabalho
escravo em campos de concentração (como a Siemens em Auschwitz). Posteriormente,
um grupo importante desses mesmos empresários foi responsável por elaborar
“listas negras” de políticos e funcionários do regime nazista, o que
possibilitou a prisão e o julgamento de alguns desses. Ou seja, foi naquele
momento o recuo desses setores que possibilitou a punição a articuladores e
operadores do regime autoritário anterior. Obviamente as condições históricas e
politicas dessas diferentes realidades não são nem de perto compatíveis, mas,
com efeito, utilizei de um exemplo para ilustrar algumas consequências
possíveis que uma determinada alteração na luta de classes pode provocar
politicamente. E o mais importante é que, para que as possibilidades de punição
do processo de justiça de transição avancem,
é necessária uma intensificação do recuo desses poucos setores de sustentação
que ainda restam. Não me sobram dúvidas que, da mesma maneira que aceleram esse
processo, cabe às massas organizadas e aos partidos de esquerda que se apresentam
nas lutas cotidianas da classe trabalhadora, o papel de conformar ainda mais
uma maioria na opinião pública favorável ao avançar do processo democrático,
intensificando a denúncia contra esses setores da sociedade civil que dão
lastro aos torturadores; além da propaganda favorável à revisão da Lei de
Anistia de 1979 para julgar aqueles que foram anistiados sem nunca terem sido
julgados por nada.
Estou convencido de que o avançar desse
processo de lutas pode não apenas levar a um fechamento favorável dos trabalhos
da CNV, como a implicações políticas importantes, tais como a aprovação do
projeto de lei de revisão da Lei de Anistia e a abertura dos arquivos secretos
das forças armadas. Porém, a tarefa democrática dos setores progressistas não para
por aí. Sempre que vitórias, ainda que parciais, são alcançadas na conjuntura
política, abrem-se novas possibilidades de luta, abrem-se novas possibilidades
de avanço dessas forças. Isso significa que, essas vitórias relativas à justiça de transição podem desencadear
num avanço do processo de questionamento com forte presença de opinião nas
massas populares a respeito da nossa herança
autoritária como um todo. Em outras palavras, a criminalização e a punição
efetivas aos torturadores do passado abre concretamente a possibilidade de
questionamento da não criminalização dos torturadores do presente. O avanço
dessas lutas abre a possibilidade de conformar um movimento real com
organização e pauta unitária de reivindicação pelo fim da institucionalização
da tortura nas forças auxiliares, a saber, sobretudo, na Polícia Militar. Pode
também, finalmente, unificar os diversos movimentos populares espontâneos que
têm surgido, sobretudo em áreas de favelas, contrários à Polícia Militar, pelas
suas atitudes institucionalizadas de autoritarismo formal e repressão violenta,
além de seu papel central na criminalização da população negra, na
criminalização da pobreza e de manifestantes. As Unidades de Polícia
Pacificadora (UPPs), que são a forma de organização e gestão política do aparato
policial sobre áreas de favelas ocupadas pelas forças do Estado, operam sobre
artifícios legais de suspensão de direitos democráticos (como o direito à
liberdade de opinião) em seus territórios, substituídos pelas ordens do alto
comando das unidades. A repressão aos direitos democráticos da população
trabalhadora favelada tem gerado grande insatisfação popular que
sistematicamente tem sido disfarçada pela maior parte dos meios de comunicação,
porém contrastada em manifestações espontâneas e violentas dessas massas
populares. É importante entender que a suspensão de direitos
constitucionalmente democráticos em qualquer área que seja dentro do território
nacional pressupõe um grave crime contra o próprio Estado Democrático de
Direito instalado em 1988, que, embora esteja fadado a uma democracia meramente
formal, pressupõe artifícios legais de proibição de tais práticas por parte da
política de Segurança Pública e das Polícias Militares. A desmilitarização do
Estado, do qual o fim da Polícia Militar com sua consequente transformação numa
corporação civil controlada e regulada pela população, apresenta-se não só como
um passo a frente na luta a ser travada pelas forças progressistas, bem como
uma necessidade imediata para diminuir ao menos pela metade o número de
homicídios no Brasil e os casos de graves violações dos direitos humanos contra
a população trabalhadora.
Por fim, cabe-me aqui concluir que o que o
Brasil deixou para trás em 1º de abril de 1964 foi propriamente a alternativa
de outro modelo de desenvolvimento
nacional, que poderia ter levado a um avanço real das tarefas nacional-democráticas e da democracia burguesa como um
todo, levando-se em conta suas possibilidades, mas sobretudo seus limites. Afinal,
a democracia é apenas a forma de
organização política que assume o Estado, que deve sempre ser entendido como um
artifício instrumental - que no caso
de uma sociedade de classes que pressupõe necessariamente a dominação de uma
classe detentora dos meios de produção e que, consequentemente, tem maior poder
na destinação final do excedente econômico, contra outra classe composta por
aqueles que necessitam vender sua força de trabalho para sobreviver - deve
sempre ser entendido como um instrumento
de classe. Em outras palavras, poderíamos ter tido, ao menos por algum
tempo, uma sociedade capitalista mais “humanizada”, algo mais aproximado de um
modelo europeu chamado de Estado de
bem-estar social, do qual, sem dúvidas, o papel da oposição comunista nas
trincheiras da luta de classes apresentando o socialismo como uma possibilidade
real (e a época ainda mais palpável) de governo do proletariado para si mesmo,
e da liderança histórica exercida pelo movimento comunista nas lutas por
direitos trabalhistas, teria desempenhado uma função fundamental na construção
dessa forma de Estado. Mas na
História concreta não há “se”. Este existe apenas nas mentes desvairadas do
curioso estudioso em História. O ponto é que o desenvolvimento de uma sociedade
plenamente capitalista sobre bases monopolistas intensificou ainda mais a
radicalização politica entre as alternativas que se apresentam à luta de
classes: ou o caminho da intensificação ora autoritária ora conciliatória da
exploração do trabalho, ou a ruptura política e econômica com o modus operandi da sociedade capitalista.
Em outras palavras, os interesses gerais da ampla maioria da população
brasileira, que em alguma escala poderiam ser expressos nas tarefas nacional-democráticas, são
plenamente inconciliáveis com o modelo econômico adotado pela economia de mercado e por suas
consequências no plano político, como o Estado burguês e o imperialismo. Podemos
conseguir avanços pontuais e não digo aqui que não devemos lutar por eles. Ao
contrário, devemos empenhar toda nossa força em sua execução, mas aqueles que
desejam “radicalizar” o processo de democratização do poder, de transferência
de poder e de riqueza das elites para o povo, devem entender que esse processo
de “radicalização” é limitado muito aquém de nossos interesses pelo modelo
societário no qual vivemos. É imprescindível não incorrer no erro de que o Estado
pode conceder ao povo aquilo que ele essencialmente
não se predispõe a fazer, o que significa que qualquer suposto
“subdesenvolvimento” do país seria uma consequência do Estado burguês não
cumprir suas tarefas de modo “correto”. Ao contrário, ele cumpre sua tarefa da
maneira mais “correta” possível; ele apresenta-se como o principal empreendedor
da economia capitalista no país e quaisquer “subdesenvolvimentos” são
precisamente frutos das contradições inerentes do avanço do processo de
acumulação privada do capital. Esses são em última instância os limites da
moderna sociedade burguesa que construímos em nosso país. Quaisquer apreciações
valorativas a respeito de que posição tomar quanto a isso, deixaremos ao
bem-estar da consciência de cada um.
·
Notas
bibliográficas:
[1] Ver
FERNANDES, Florestan. A revolução
burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro,
Globo, 2006.
[2] Ver
COSTA, Ricardo. Gramsci e o conceito de
hegemonia. Salvador/São Paulo: ICP, 2011.
[3] Ver
LÊNIN, V.I. Imperialismo, estágio
superior do capitalismo. Moscou: edições progresso, 1979.
[6] Opt. Cit.
[7] Para
uma exposição geral do fenômeno indico Dicionário
de política organizado por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco
Pasquino, importantes cientistas políticos liberais. O livro foi editado no
Brasil pela Universidade Nacional de Brasília. Ver BOBBIO, Norberto et. Al. Dicionário de política. V.I
& V.II. Brasília, ed. UnB, 2008.
[8] Infelizmente
não temos tempo de discutir mais detalhadamente nenhum destes três aspectos,
mas particularmente gostaria de deixar duas indicações. A primeira, do
premiadíssimo documentário O dia que
durou 21 anos (2012) de Camilo Tavares, que expõe gravações inéditas no
Brasil de John Kennedy, então presidente dos EUA, articulando uma conspiração
contra Jango desde 1962. Vale ressaltar que, diferente dos arquivos militares
brasileiros, mesmo nos EUA estes arquivos já foram tornados públicos. Já a
segunda, do também premiado documentário Cidadão
Boilesen (2009) de Chaim Litewski que fala sobre a atuação do grande
empresário dinamarquês dono da empresa Ultragás,
Henning Albert Boilesen durante a ditadura. Sua atuação consistia em articular
no meio empresarial, inclusive entre as grandes metalúrgicas e montadoras de
São Paulo, financiamento para a Operação Bandeirantes (OBAN) precursora do modus operandi do DOI-CODI. Por gostar
de assistir e participar das sessões de torturas, Boilesen foi reconhecido por
prisioneiros que escaparam da morte. Em 1971, a Ação Libertadora Nacional, grupo guerrilheiro liderado por Carlos
Marighella, assassinou Boilesen em São Paulo com 21 tiros alegando motivo de justiciamento.
[9] Ver
DREIFUSS, René. 1968: A conquista do
Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Vozes, 2008.
[10] Ver
SANTANA, Marco Aurélio. Homens partidos:
comunistas e sindicatos no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001.
[12] Dados
tabelados disponíveis em SINGER, André. Os
sentidos do lulismo: reforma gradual e pacto conservador. São Paulo: Cia
das Letras, 2012.
[13] Gostaria
de mencionar aqui que alguns estudos recentes apontam uma grande semelhança
entre Brasil e Espanha na “transição por cima” que acabou com a vertente franquista do fascismo e a formação de
uma democracia baseada no presidencialismo
de coalizão.
[14] Isso
não significa que não haja uma fração importante da classe burguesa que
sustenta um apoio crítico ao governo federal, do qual seu principal exemplo é a
fração dos monopólios de comunicação e de imprensa. Entretanto não caberá a nós
aqui falar sobre esse assunto.
[16] Um
dos argumentos expostos é de que as investigações desprestigiariam os
comandantes do alto escalão em relação aos seus comandados oficiais e
suboficiais que discordam politicamente desses. Isso significaria, nas palavras
de seus partidários, uma “grave quebra no valor da hierarquia das forças
armadas”. Ora, independente de qualquer juízo de valor a respeito da hierarquia
como forma de organização política de qualquer instituição, fica evidente que
os partidários de tais argumentos querem utilizar a hierarquia não como um
valor, mas como um instrumento político para garantirem seu poder dentro desses
aparatos coibindo a possibilidade de um processo democrático (no sentido de
maior liberdade de manifestação de opiniões por parte dos comandados) dentro
das próprias forças que leve a um debate sobre qual posição as forças devem
tomar diante desse processo. Apresenta-se aqui, então, uma disputa entre hierarquia e legitimidade. O argumento hierárquico pretende sobressair ao
argumento da legitimidade política de tais comandantes, o que, na minha
opinião, não deveria jamais acontecer. Sou partidário da posição de que sempre
devem sobressair as tomadas de posição de maior legitimidade, ou seja, das tomadas
de posição que sejam de opinião da maioria, independente das posições dos
indivíduos em qualquer sistema hierárquico. Parece-me que o doloroso silêncio
das forças armadas até hoje sobre os acontecimentos da justiça de transição é uma tentativa do alto comando (responsável
por decisões consideradas “oficiais”) de evitar qualquer perda de legitimidade
com seus próprios comandados, o que resultaria num isolamento político ainda
maior para estes.